terça-feira, 5 de janeiro de 2016

DEGUSTAÇÃO 15 – A MURALHA DE ADRIANO

O livro escolhido para a Degustação de hoje foi editado pela Bertrand Brasil em 2007 e posteriormente ganhou versão digital da editora Cintra.

Publicamos, a seguir, o primeiro capítulo do romance A MURALHA DE ADRIANO.

Saiba mais, na página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.


Menalton Braff  – A muralha de Adriano

Estátua de sal

Capítulo I

Sinto meu corpo preso a esta superfície lisa e plana, onde deslizo meu silêncio, sem a penetrar, porque é rasa, nem dela me descolo, pois é minha única realidade. De repente percebo que o tempo deixou de fluir. Como foto antiga em preto e branco. Desde hoje cedo, só o presente existe. Um presente cinza, o mundo descorado. Minha vida em black-out fechado, total. Nada além deste momento sem história ou futuro. Tento me envolver dos acontecimentos como se fossem o foco de minha perspectiva, mas não há massa por onde atravessar: estou vazia. Nem memória, tampouco imaginação. A realidade é uma lâmina fina que lateja em minhas têmporas. Ao receber a notícia, senti que o tempo se propagava em ondas concêntricas, sem progressão. Não sofri uma perda particular, mas, de repente, era uma peça
do jogo, uma peça importante do jogo, que sumiu. Por isso já não sei como dar o próximo lance. Desde hoje cedo só me pergunto que sentido teve a vida do Anselmo. Não consigo entender. Olho para os lados e só vejo superfícies impenetráveis, sem perspectiva. Preciso saber que parte de mim morre com ele, com a urgência de quem perdeu todos os nortes. 

Tento escorar-me em minha mãe – que me olha enternecida – e apóio meu braço em seus ombros poucos, não tanto por ser um momento de tristeza, como as pessoas esperam que seja, mas porque há mais de duas horas me mantenho de pé e tenho a impressão de estar inchando. Meu corpo está mais cansado do que eu. A Maria da Graça me enlaça e sua mão delicada afaga minhas espáduas, seu modo de me consolar. Minha pobre mãe! Entende meu gesto a seu modo e colhe esta parca felicidade. Seu modo errado de ser feliz. Ela chegou aqui chorando, sincera, apesar de tudo. Completamente humana. A verdade é que, no fundo, bem sei, minha mãe jamais suportou aquele jeito de macho possessivo do Anselmo, seu rosto obsceno de lábios sempre úmidos e aqueles olhos que possuíam todas as mulheres num raio que só terminava no horizonte de sua imaginação. Que impressão desagradável, minha filha. Quando ele se afastava e ficávamos a sós. Mas não revelava a causa do desagrado. Nem precisava. Pois, apesar de sua repulsa, suas lágrimas eram límpidas e verdadeiras quando chegamos. Sei como é isso de morrermos um tanto a cada morte que testemunhamos. Sei. Apenas sei. E isso em nada me ajuda. Como a paisagem além da vidraça: não a sinto fria ou quente. Está lá e não me diz nada.   

Neste instante o existente em mim é este saguão que mal vejo através da fumaça, pois é um espaço com círios a se consumirem, muita gente, sombras soturnas que tossem sobre as mãos fechadas e cochicham fragmentos de inteligência. Um crucifixo maior do que o necessário, improvisado à cabeceira do esquife, é sofrimento puro, é uma dor rústica e dura feita de bronze. O piso é de mármore e as paredes, meu Deus, mas de que são mesmo estas paredes? Sinto nos nervos o frio deste estilo impessoal que não me dá aresta nenhuma onde me acomodar. Preciso me agarrar a alguma coisa se quero ter a certeza de que continuo viva, que continuo flutuando à superfície do tempo ou de mim mesma. As mãos que apertei até agora eram todas frias e me anunciavam a morte. Não como certeza e ameaça do futuro. A morte que já depôs suas marcas de cinza em tudo que existe. Que está neste espaço cúbico cheio de fumaça e com o cheiro enjoativo do espermacete.

Somos seres engaiolados em jaula suja. Esta idéia me dá náusea. Ou é a fumaça? Acabo de tossir também. Preciso sair um pouco para respirar. Meu estômago se revolta com a mistura deste perfume já murcho de flores velhas com o cheiro seboso do espermacete. Mas não posso. Não posso sair agora porque aqueles garotos com cara e mochila de repórteres começaram a olhar muito pra mim. Acho que me descobriram por baixo dos disfarces. Estão confabulando e parecem dispostos a me abalroar. Preciso chegar mais perto do Anselmo, talvez chorar. Pelo menos fingir que estou chorando. Me enrosco ainda mais em minha mãe. Acho que não terão coragem de se aproximar. É preciso mantê-los a distância, porque, se alguém me perguntar o que estou sentindo, vai ser uma merda. A verdade é inconfessável e não estou com  disposição nem humor para inventar uma mentira.

Benditos óculos escuros: de quanto esforço me livram.

Mas enfim, quem é o Anselmo Fagundes do Carmo? Não sei. Nunca soube, o que pode significar que jamais saberei porque agora ele se retirou estupidamente. Também já começo a fazer melodrama, como se já não fizesse bastante tempo que desisti de tentar encontrá-lo.  Que sei eu de mim, que tanto me procurei no espelho do Mateus? Ainda ontem... ontem?! Como saber as distâncias do que já não existe a não ser na memória, esta planície em que início e fim são móveis e se confundem? Mateus falou das imagens com que nos relacionamos. Quem era o Anselmo escondido por dentro do Anselmo? Cento e oitenta, disseram na polícia. Cento e oitenta? Sim, pelo laudo técnico, cento e oitenta. Ele, o Anselmo. Dizia com orgulho jamais ter sido ultrapassado na estrada. O Anselmo. Competindo desde que nasceu. E vai embora sem que eu o conheça, sem que saiba quem  ele é. Vai embora suspendendo sua participação na disputa. A competição, ele repetia diariamente, não é mais questão de estilo, mas de sobrevivência. Minha mãe deve ter ficado com pena da juventude desperdiçada. Não consigo sentir nada além da vontade de sair daqui e respirar um pouco de ar puro.
O pessoal da televisão está solto por aí. Não fosse isso, tomava um café bem forte na cantina. Mas qualquer movimento, me descobrem. Há três mulheres em volta do corpo que me parecem casos do Anselmo. Uma delas chora com muito sentimento, meio destruída, desfeita. A outra, aquela loira que não tira os olhos dele, chora sem perder a compostura, muito princesa e elegante, em seu sofrer, para quem já sentiu alguma paixão. Elegância e paixão são incompatíveis. A outra já me encarou mais de uma vez, o que me causa desconforto. Teria sido o último caso dele? Ela não chora, pelo contrário, parece estar com muita raiva. Como vieram parar aqui, essas mulheres, se o dia mal caiu na estrada? E os políticos não param de desfilar. Lambaris e tubarões, calibres diversos. O que mais aparece, contudo, é puxa-saco querendo aparecer em fotografia: prestígio paroquial. Não posso sair daqui. Sou abelha com as pernas presas no mel e a vibração de minhas asas não me traz nenhum proveito. Pouca diferença estar dentro ou fora do esquife.  

Os amigos de meu pai se aproximam muito confortantes para nos cumprimentar, suas mãos frias tateando-me a distância, em recolha imaginária do que julgam ser as promessas de meu vestido preto, despojos de uma guerra pelo menos suposta. Os amigos de meu pai, quase todos. Alguns babam na minha luva, que não retiro para não lhes satisfazer a sede.

Finalmente chega o Mateus, e sua chegada bota um pouco de luz neste cenário de sombra espessa e pesada. Até a fumaça fica mais rala, escassa. Eu já estava perdendo a esperança de que ele viesse. Me olha de longe, sua cabeça, para os outros, incógnita entre tantas, e fica parado bem na minha frente, mas do outro lado do saguão. Entendo sua distância, a necessidade que ele tem de me resguardar. Sua chegada esvazia a morte de alguns de seus sentidos. Este flash, agora, acho que tinha a minha direção. Não me assusta, pois estou escondida atrás dos óculos. Não, o Mateus não veio assistir ao meu sofrimento nem avaliar sua intensidade, movido pelo ciúme. Ele sabe que não sofro. Deve saber que o Anselmo é apenas um corpo, uma coisa indiferente, sem peso nenhum além de seu peso em decomposição.

                                                                            *

De fomes abomináveis foram tecidas nossas alianças. Havia pasto no vasto campo e um desejo a galope, mas então as cercas estreitaram-se, como se o tempo não mais nos pertencesse. Havia ainda espaço no escasso campo e uma fome vagarosa, por isso as promessas foram ofertadas em cocho de madeira. O céu desceu silencioso até nos tocar as cabeças. Perderam-se os horizontes, suas distâncias, o sonho perdeu-se num quarto estreito, em sua própria fumaça.
Do passado restaram tão-somente estilhaços, que nos acusam de usar todos os espaços em nosso benefício. A partir de agora, então, seremos o trigo de nossa própria farinha, para  que formas nunca vistas brotem naturalmente da terra.     
                                                                         
                                                                             *

 Era uma alegria quente depois da meia-noite. Uma alegria úmida e quente vista em massa tão compacta que se tornava uma alegria impessoal: era o salão quem estava alegre. Verônica aproveitava o descanso para observar o movimento e surpreendeu-se então sorridente, dentes à mostra. Fechou rapidamente a boca, pensando que, com um sorriso assim, destinado ao salão lotado, mas a ninguém em especial, ficava com cara de tola. E isso ela não se julgava. Ficou séria, mas continuou sua investigação dos arredores. Suas amigas deixaram-na sozinha na mesa e sumiram da vista sacudindo os braços e movendo as pernas ao som exultante de uma banda com fôlego e volume para derrotar qualquer tentativa de tristeza. As duas, com os parceiros, arranjados ali na hora para um jogo de fingimento, mas de muita alegria. Elas duas perdidas naquela massa descomunal de rostos indiferentes. Todos sorriam o mesmo sorriso, desfrutando, quiçá, da mesma alegria. Verônica sentiu um início de ciúme, pois ninguém tinha como ela tanto direito de estar feliz. Feliz talvez fosse um exagero vocabular e ela corrigiu com modéstia para estar alegre, quem sabe apenas contente. Claro, contente. Um contentamento que já perdera um pouco do vigor, como tinha sido aquele no dia em que viu seu nome na lista de aprovados. Parecia uma coisa tão remota. Agora não passava de uma caloura em sua festa de calouros, dois meses de aula, turmas formadas, grupos e aderências. Mas feliz, bom, a felicidade parecia exigir maior plenitude de sentimentos, enquanto ela estava apenas satisfeita com o ingresso na faculdade. E alegre. Por uns poucos segundos pensou sobre as diferenças, mas salvou-se a tempo de pensamentos que poderiam distraí-la da obrigação de estar alegre. 

Em cima do palco a banda parou com o estrondo metálico e brilhante de todos os instrumentos, liderados pela bateria, abertos como num desespero. O salão relaxou os músculos e desceu um degrau em sua temperatura sem aqueles cem megas das caixas de som funcionando, e as paredes se afastaram em ordem, mais leves que um suspiro. Verônica tentou ouvir o que o guitarrista dizia ao microfone, mas a alegria estava ainda muito ruidosa e ela só ouviu alguma coisa que se parecia com “um intervalo... já, já, pessoal”. Os mais entusiasmados não queriam parar e por isso protestaram, mas a vaia foi recebida no palco como elogio de quem quer mais. E era.

Verônica lembrou-se dos bailes da Sociedade Recreativa, no interior. Desfilava pelo salão, muito suserana e altiva, gozando as homenagens de seus vassalos. Olhou aflita para os lados e percebeu nas fisionomias anônimas que a cercavam o quanto estava só, irremediavelmente só, de uma solidão escura e densa, como se o ar se recusasse a entrar em seus pulmões.

Para enganar o pânico, fingiu-se à beira de uma surpresa e se levantou. De sua nova altura, então, descobriu com súbito prazer as amigas aproximando-se contentes, com seus muitos sorrisos inteiramente à mostra. Iara, a morena e mais alta, dividia com ela o cetro da sala de aula. Vinha também do interior, o que era bastante confortável: refugiavam-se uma na outra contra escárnios metropolitanos: essas dores macias. Não conhecia direito Priscila, que passava uns dias no apartamento de Iara − amigas de infância. Mas tão simpática, a Priscila, que se tornava desnecessário qualquer ciúme. 

O assunto, quando sentaram, era ainda o modo como tinham-se livrado dos parceiros, àquela hora planejando uma noitada que prometia, os dois sentados dentro de um carro, fumando, numa esquina falsa, de um bairro falso e distante, os dois bem donos da madrugada, à espera. As duas contavam ao mesmo tempo a história a Verônica, que nada entendia por causa do estado eufórico em que elas chegaram. Priscila chamou o garçom e pediu vodca com gelo. Não conseguia parar de rir. Festa existe para a gente se divertir! Repetia a frase, rindo muito, achando graça em tudo. Não é, Verônica? Atraída assim de volta para o baile, de repente, Verônica desviou os olhos, fugitivos, ao descobrir que o sorriso de Priscila já estava trincado, prestes a se partir.  

Não demorou muito para que o garçom chegasse com os três copos de vodka, que deixou sobre a mesa depois de pegar as fichas. No palco, os músicos começavam a afinar seus instrumentos, por isso Priscila apressou-se a levantar um brinde. À nossa alegria, ela disse com o copo erguido em oferenda aos deuses. À alegria do mundo inteiro, ela insistiu, pensando que o mundo inteiro tinha vindo ao baile de suas amigas. Então, depois de ter despejado a bebida toda sobre sua sede, segurou com a mão pesada o pulso de Verônica, puxando-a, e lhe disse bem dentro dos olhos, com a língua molusca, que no dia seguinte teria de voltar para a vidinha de sempre, regida, controlada e vigiada dia e noite. Vidinha, entende? Aquilo não é vida. É vidinha. Isso mesmo. E soltou uma gargalhada estridente que subia de algum lugar da alma para explodir em sua boca. Apesar de tudo, tentava desesperadamente ser alegre porque estava em uma festa e não podia perder a oportunidade. Em uma festa, entende? Verônica recuou um pouco com sua leve tontura, que ameaçava transformar-se em náusea, para não ser atingida quando o sorriso de Priscila partiu-se.

Verônica foi quem viu primeiro, mas foi de Iara a iniciativa e a pressa. Priscila segurava a boca, por onde a vida tentava escapar, e fechava os olhos, na esperança de que o salão não oscilasse mais. Iara levantou-se e arrastou-a para o banheiro.

Era impossível encontrar um vaso sanitário desocupado, e a imensa fila ameaçava invadir as celas individuais. Os primeiros acordes da banda chegavam do salão, misturando-se ao vozerio feminino em que gargalhadas e choro não se distinguiam muito bem. Priscila não se conteve, desmanchando-se no caminho até uma pia, onde a fizeram mergulhar a cabeça debaixo de um jato de água. Apesar de seu desejo de morrer ali mesmo, a água da torneira desmanchava suas lágrimas. Enquanto Verônica tomava conta do corpo sem vontade praticamente nenhuma de manter-se de pé, Iara segurava com as duas mãos a cabeça da amiga debaixo da torneira.

A água, finalmente, começou a desmanchar as feições de Priscila, tão nítidas lá no salão. Seus cabelos enrolavam-se no pescoço, grudavam no vestido. Verônica olhava a cena como se fosse um filme visto há muito tempo, já diluído pelas semanas, o sentido quase todo apagado. Tentava afastar-se para uma invenção qualquer, como se bastasse fechar o livro e pensar em outras coisas, mas se dava conta de que era tudo muito presente, que o cheiro azedo era real e subia do piso lamacento, que o peso da amiga era enorme e que Iara agia com naturalidade, muito experiente. Sua testa cobriu-se de suor e palidez e os pensamentos confundiram-se em suas vistas bêbadas. Por alguns instantes sofreu a vertigem de se ver no lugar de Priscila e perguntou-se então o que poderia estar fazendo ali, na companhia de duas pessoas de que até há poucos dias nunca ouvira falar e que, ainda desconhecidas, faziam agora parte deste seu novo mundo, preenchendo aqueles vazios que antes não pareciam existir. Tudo aquilo era assustador, mas excitante como caminhos de sabor desconhecido.
No saguão, as amigas despediram-se de Verônica, lastimando o fim inesperado da festa. Priscila garantia estar em condições de ficar, mas era desmentida pelo rosto desfeito. Que só não ficava, ouviu, Verônica, porque a Iara devia estar morrendo de sono. Desceram a escadaria as duas abraçadas para dentro da noite, onde desapareceram.

Mais uma vez sozinha, Verônica suspirou ao pensar que não estava muito a fim de continuar no baile, mas não sentia sono e não se conformava em abandonar a festa sem que nada absolutamente tivesse acontecido. Não achava justo voltar para o apartamento a zero, como estava. Seria uma sensação escura de fracasso, a pior de todas as sensações. Por isso, foi disposta a engolir aquele salão todo, com sua banda estrondeando alegria, que ela subiu de dois em dois os degraus até o primeiro andar, onde o ar estava mais quente.
 
Verônica entrou no salão mordendo a própria boca, por dentro, e sentindo gosto de cereja porque acreditava com certa firmeza que ser alegre, em uma festa, era o mesmo que morder alguma fruta vermelha. Era com o corpo que ela se alegrava, enquanto o sangue, agitado, se preparava para o calor. Então, antes mesmo de alcançar sua mesa, entrou, muito disposta à admiração, numa roda em torno de um rapaz que dançava como só se via no cinema e na televisão. Quando erguia os braços e batia as mãos acima da cabeça, olhava por baixo de seus olhos mordendo o lábio inferior e piscava com pestanas longas, ameaçando desfazer-se em luxúria ali mesmo, no meio daquela roda. Verônica percebeu o modo como a maioria das garotas se embebia da volúpia dos gestos e do sorriso do bailarino e por isso resolveu que era preciso querê-lo mais que todas as outras. Só esperou que a olhasse, como em seguida a olhou, para encaixar sua mão presa na mão dele, enquanto um braço comprido a enlaçava pela cintura, fazendo-a rodar sobre si mesma como um pião, numa vertigem tão forte como um orgasmo.  
 
Estar no meio de uma roda com aqueles olhos todos convergentes como holofotes, não precisa ser incômodo nem perigoso. Só exige que o pensamento não esteja solto, disperso a deambular pelas fisionomias. É necessário que a mente se ocupe tão-somente de si mesma e dos próprios movimentos. Tudo o mais deve perder a existência. Verônica usava os braços e as pernas do jeito que sempre dançava: gestos de ângulos agudos, negaceios e arabescos. Seu corpo marcando as tônicas do compasso com requebros sem nenhum pudor.

Quando a banda anunciou mais um intervalo e logo, logo a gente está de volta, o círculo fechou-se um pouco mais sobre o casal com aplausos ruidosos. Verônica pôs-se nas pontas dos pés e firmou as duas mãos na nuca do parceiro. Entregou-se então a um beijo demorado, um beijo como costumava ver nos filmes, corolário de um espetáculo muito aplaudido, em cujo centro sentiu-se rainha. Todos entenderam o sorriso, logo depois, como seu agradecimento pelos aplausos e não deixavam de ter um pouco de razão, mas a causa principal era aquela satisfação tão grande, por causa dos momentos de sucesso, que chegava quase a ser uma felicidade.

A madrugada já entrava pelas janelas e sacudia as cortinas, quando Rodrigo bocejou um convite que Verônica não conseguiu entender. Depois de várias exibições bastante aplaudidas, ele disse que preferia ficar descansando na mesa de Verônica e lhe perguntou se podia pedir um uísque. Se pode, ele pediu com modéstia, olhos de pedinte. A caloura concordou logo com o descanso e com o uísque, pois, na verdade, não sentia o menor entusiasmo pelo rock. O volume avassalador com que a banda emitia seu recado era muito conveniente para Rodrigo, que nunca fora de muita conversa e agora não saberia o que dizer. Por isso os dois ficaram bebericando o uísque aguado, enquanto suas mãos e seus olhos anunciavam o destino comum que tomariam naquele resto de noite.

– Vamos até meu apartamento – gritou finalmente Rodrigo, quando achou que poderia fazer-se ouvir.
Verônica, com muito esforço, conseguiu informá-lo de que preferia o seu, mas não conseguiu dizer por quê. Também não foi necessário, porque Rodrigo não opôs objeção alguma. O desgaste físico transformava-se em sono e ele não estava em condições de escolher.

Era quase meio-dia quando o cheiro do suor de um corpo adormecido por inteiro a seu lado começou a incomodar Verônica. Abriu os olhos como se espantasse alguma vertigem, primeiro sem saber para que lado olhar. Piscou prolongado, pois acreditava que isso podia ajudar a memória e, de cotovelos cravados no travesseiro, ergueu-se um pouco para observá-lo melhor. Sem muito entusiasmo, contudo, porque sentia um gosto amargo na boca: mistura de bebida e frustração. Era de fato um belo corpo, reparou Verônica, e, largado daquele jeito, todo entregue a seu sono, pareceu-lhe uma coisa pesada e inútil. Com a mão direita espalmada, ela pressionou o púbis, onde latejavam restos de desejo, que Rodrigo não soubera extinguir.

Saltou da cama sem nenhum cuidado porque era urgente tomar uma ducha. O roqueiro era uma oferta em holocausto sobre o altar, imóvel, gozando sua morte profundamente.
                                                   
                                                                    *

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