A sinopse acima é do livro A ESPERANÇA POR UM FIO, editado em 2003, pela Ática. Publicamos, a seguir, o primeiro capítulo da novela juvenil.
Para saber mais, acessse a página do livro aqui no
BLOG DO MENALTON.
A esperança
por um fio – Menalton Braff
E agora?
Faz mais de duas horas que estou aqui sentado, nesta sala
abafada e deserta. Sem movimento algum, parado em mim, embrutecido, com esta
minha cara de palerma me latejando. Desde hoje cedo submergi num pesadelo de
que não consigo acordar. Faz mais de duas horas que respiro este ar
insuportável que me arranha a pele e o esôfago, com aquela raiva doentia que só
medra em recintos de horror. A mancha de sol que encontrei estatelada aí ao
lado da mesinha já se arrastou pelos tacos do assoalho e escalou a parede, sumiu.
Eu sinto que a sala me estranha, cheia de hostilidade, mas não consigo sair
daqui.
Desde que saímos do
hospital, minha mãe não me dissera mais nada. Só isso. No táxi, ela enfiou os
olhos pela janela de seu lado e assim ficou: tesa, metálica. Mal pusemos os pés
dentro de casa, ela me
diz isso. Preparado. Por que preparado? Não entendo de imediato o que ela quer dizer com esse negócio de preparado. Não estou bem. Sei que não estou bem. Por isso ela quer que eu me prepare.
diz isso. Preparado. Por que preparado? Não entendo de imediato o que ela quer dizer com esse negócio de preparado. Não estou bem. Sei que não estou bem. Por isso ela quer que eu me prepare.
Mas que me prepare pra
quê?
As palavras dançam algum tempo ante meus olhos: preparado,
amanhã, verdadeiro estado. Vazias e sem cor. O esforço para entender o que
acontece à minha volta me provoca náuseas, me deixa atônito. Não consigo firmar
os pés no fundo e a maré me arrasta.
Nem bem me fez aquela advertência, que de início me pareceu
ilógica, desapareceu para o interior da casa, voltando pouco depois já de roupa
caseira. Sempre daquele jeito: seca, metálica. Sua vida volta à rotina diária.
Não lhe importa o fato de que acabamos de deixar meu pai em coma no hospital,
com um aneurisma rompido. Ela não cede, não fraqueja. Odeio o modo como minha
mãe demonstra insensibilidade. Odeio esta força dela.
Ouço o barulho que ela faz por onde passa, em suas lides da
casa. De vez em quando, abre uma fresta na cortina e me espiona, querendo
saber. São estes momentos que me restituem as ligações com o ambiente, que me
lembram o drama vivido por nós desde hoje bem cedo.
Agora ela está outra vez me espionando. A fresta que minha
mãe abre é mínima, quase imperceptível, mas percebo um leve ondular da cortina
que a denuncia. Além disso, ela se esquece de esconder os dois pés, tão
expostos como em uma vitrina.
Começo a sentir dores no corpo, não sei se do tempo em que
fiquei aqui parado ou se do friozinho que começa a entrar pelas janelas. Quem
sabe uma gripe que vem chegando. Ela desapareceu há pouco e sinto o cheiro do
alho que vem da cozinha. O chiado de alguma coisa caindo na frigideira me causa
engulhos. Como pode alguém pensar em comida, numa hora dessas?
O interior da sala começa a desaparecer nas sombras e a
diluição das formas, principalmente das mais hostis, como aquele vaso de flores
roxas de cera, ali sobre a mesa, me relaxa um pouco. Parece que descansando as
vistas vou me sentir melhor. Não posso esquecer de vestir um agasalho, porque
este início de noite está bem frio. Acho que estou muito cansado, também.
Mas o que será que ela quis dizer com preparado. Eu,
preparado? Preparado pra quê? Minha mãe, por acaso, está sugerindo ... Meu
Deus, não consigo entender o que seja uma tragédia. Não posso continuar aqui
sentado, enxotando fantasmas. Preciso movimentar estas pernas pesadas. Andar um
pouco me faria bem. Mas é como se não comandasse meu corpo, nem talvez minha
vontade.
Faz bastante tempo que não ouço mais os ruídos de minha mãe
pela casa. Ela também parou de me espionar. Claro, no escuro, como estou, não
adiantaria de nada.
A cortina move-se bruscamente e ouço o convite que ela me
faz, com sua voz seca e firme:
– Vem, Artur. Vamos jantar.
Penso em recusar o convite, fome nenhuma. É uma
oportunidade, no entanto, de sair deste torpor.
Levanto e a acompanho até a
cozinha. O cheiro de alho torna-se ainda mais forte. Me parece que ela preparou
macarrão alho e óleo para o jantar.
Minhas vistas se ofuscam, quando entro na cozinha: muito
tempo no escuro. Ainda com os olhos espremidos e a testa enrugada ocupo meu
lugar à mesa. Sem dizer nada, minha mãe serve meu prato e me estende, como ela
geralmente faz. Só então percebo à minha esquerda a cadeira vazia. Fico
imobilizado, um nó apertando minha garganta, uma sensação de frio subindo desde
os pés.
– Tem que reagir – ela me diz quando nota que não reajo –
não pode ficar assim.
Ontem à noite, eram dez e meia, mais ou menos, meu pai me
disse:
– Vou dormir, filhote. Amanhã a gente termina de colar esta
fuselagem. Tudo bem? Acho que a pressão não anda boa, porque estou sentindo um
pouco de dor de cabeça.
Foi a última coisa que ele me disse. Faz uns quinze dias que
ele vinha me ajudando a montar meu primeiro aeromodelo e faltava bem pouco para
terminar, mas o modo com que ele me despenteou com a mão direita e em seguida o
beijo que me deu na testa, não me deixaram insistir.
Hoje de manhã, acordei com os gritos de minha mãe que me
chamava.
– Artur, corre aqui – ela dizia – depressa, menino. Seu pai
está passando mal.
Quando cheguei ao quarto dos dois, ainda ouvi a sororoca
emitida por sua garganta, como se ele estivesse morrendo. Já estava em
coma.
– Mãe, ele está morrendo – gritei horrorizado.
Ela estava apenas
reclinada na cama e tentava amparar o corpo de meu pai, com medo de que aquela
sororoca o afogasse.
A uma ordem dela, saí correndo no escuro, à cata do
telefone.
– Vai – ela ordenou – vê se chama alguém, pelo amor de Deus.
Tropecei na mesinha de centro, na sala, caí, mas a tensão
era tamanha que me levantei como se tivesse virado mola. E o maldito telefone,
onde é que poderia estar escondido? Depois de muitos tropeções, dos pés e das
mãos, meus dedos nervosos o encontraram. Mas ligar pra quem?, eu pensei em
pânico. Eu não tinha ideia de quem é que poderia socorrer-nos numa hora
daquelas. Era uma situação inteiramente nova, inesperada, e a sensação de
inutilidade e impotência me fizeram chorar.
Não atinava com o que fazer, quando
ela chegou por trás de mim.
– Dá isso aqui! – me disse decidida. E é como se tivesse
dito: Você é um imprestável, mesmo, deixa que eu chamo o socorro.
"Imprestável" foi um som que não ouvi, mas que rebateu por dentro de
minha cabeça como uma microfonia em volume infernal.
Tomou o telefone de minha mão e começou a discar. Então me
senti salvo porque ela também hesitou, sem saber para quem apelar.
– Corre, Artur, vai chamar seu Vitorino. Mas ande, meu
filho!
Seu Vitorino foi quem nos levou até o hospital. Voando, eu
acho. Fiquei enterrado no banco da frente, com medo de olhar pra trás, onde
minha mãe levava meu pai praticamente no colo, e descobrir meu pai morto. A
sororoca tinha passado e ele parecia mais calmo, mas não se movia, o que me
aterrorizava.
O vizinho se desculpou, dizendo que tinha de ir para o
trabalho, mas que se a gente precisasse de alguma coisa, etcétera e tal.
Minha mãe de vez em quando sumia por uns corredores e tempos
depois voltava muda como tinha saído. Não me dizia nada. Eu não me arredava
daquele saguão frio, enterrado em uma daquelas poltronas, me protegendo do
vento úmido que entrava pela porta. Assim passamos a manhã e bom pedaço da
tarde.
Na última vez que minha mãe se embarafustou por um daqueles
corredores, criei coragem e fui atrás. Em seguida ela encontrou um médico e
consegui ouvir parte do que ele disse a ela. Nem tudo entendi, mas sei que
tomografia é um tipo de exame e que aneurisma é uma doença muito grave. Foi
isso que arrebentou na cabeça de meu pai, como ele explicou. Odeio este
aneurisma. Não sei direito o que é, mas desde já e para todo o sempre odeio
este aneurisma, odeio qualquer aneurisma em qualquer parte do mundo.
– Tem que reagir – ela repete, ríspida.
E a cadeira gruda na minha retina, me paralisa.
– Artur – ela grita como um trovão furioso – você está me
ouvindo?
Pisco e sacudo a cabeça antes de encará-la, um gosto amargo
na boca, um frio nas extremidades dos membros.
– Mãe – eu tento dizer alguma coisa, mas não atino com o
quê.
– E vê se tira este boné da cabeça, menino. Quantas vezes é
preciso dizer que à mesa não se usa nada na cabeça?
O sangue parece que volta a circular e o frio diminui. O
mundo começa a fazer sentido.
Levanto-me sem dizer nada e arrasto para o quarto o medo e a
raiva, esta tristeza sem tamanho, muito maior do que eu.
*
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