segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

DEGUSTAÇÃO 20 – A ESPERANÇA POR UM FIO


Com o pai morrendo no hospital e as contas atrasadas, Artur entra em desespero. De onde tirar forças para enfrentar o mundo, arrumar emprego, continuar estudando e declarar seu amor por Marília, seu único apoio?

A sinopse acima é do livro A ESPERANÇA POR UM FIO, editado em 2003, pela Ática. Publicamos, a seguir, o primeiro capítulo da novela juvenil.


Para saber mais, acessse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.

A esperança por um fio – Menalton Braff

E agora?

Faz mais de duas horas que estou aqui sentado, nesta sala abafada e deserta. Sem movimento algum, parado em mim, embrutecido, com esta minha cara de palerma me latejando. Desde hoje cedo submergi num pesadelo de que não consigo acordar. Faz mais de duas horas que respiro este ar insuportável que me arranha a pele e o esôfago, com aquela raiva doentia que só medra em recintos de horror. A mancha de sol que encontrei estatelada aí ao lado da mesinha já se arrastou pelos tacos do assoalho e escalou a parede, sumiu. Eu sinto que a sala me estranha, cheia de hostilidade, mas não consigo sair daqui.

– Esteja preparado, Artur, seu pai está muito mal. Amanhã vamos saber melhor qual o verdadeiro estado dele.

Desde que saímos do hospital, minha mãe não me dissera mais nada. Só isso. No táxi, ela enfiou os olhos pela janela de seu lado e assim ficou: tesa, metálica. Mal pusemos os pés dentro de casa, ela me
diz isso. Preparado. Por que preparado? Não entendo de imediato o que ela quer dizer com esse negócio de preparado. Não estou bem. Sei que não estou bem. Por isso ela quer que eu me prepare. 

Mas que me prepare pra quê?

As palavras dançam algum tempo ante meus olhos: preparado, amanhã, verdadeiro estado. Vazias e sem cor. O esforço para entender o que acontece à minha volta me provoca náuseas, me deixa atônito. Não consigo firmar os pés no fundo e a maré me arrasta.

Nem bem me fez aquela advertência, que de início me pareceu ilógica, desapareceu para o interior da casa, voltando pouco depois já de roupa caseira. Sempre daquele jeito: seca, metálica. Sua vida volta à rotina diária. Não lhe importa o fato de que acabamos de deixar meu pai em coma no hospital, com um aneurisma rompido. Ela não cede, não fraqueja. Odeio o modo como minha mãe demonstra insensibilidade. Odeio esta força dela. 

Ouço o barulho que ela faz por onde passa, em suas lides da casa. De vez em quando, abre uma fresta na cortina e me espiona, querendo saber. São estes momentos que me restituem as ligações com o ambiente, que me lembram o drama vivido por nós desde hoje bem cedo.

Agora ela está outra vez me espionando. A fresta que minha mãe abre é mínima, quase imperceptível, mas percebo um leve ondular da cortina que a denuncia. Além disso, ela se esquece de esconder os dois pés, tão expostos como em uma vitrina.

Começo a sentir dores no corpo, não sei se do tempo em que fiquei aqui parado ou se do friozinho que começa a entrar pelas janelas. Quem sabe uma gripe que vem chegando. Ela desapareceu há pouco e sinto o cheiro do alho que vem da cozinha. O chiado de alguma coisa caindo na frigideira me causa engulhos. Como pode alguém pensar em comida, numa hora dessas?

O interior da sala começa a desaparecer nas sombras e a diluição das formas, principalmente das mais hostis, como aquele vaso de flores roxas de cera, ali sobre a mesa, me relaxa um pouco. Parece que descansando as vistas vou me sentir melhor. Não posso esquecer de vestir um agasalho, porque este início de noite está bem frio. Acho que estou muito cansado, também.

Mas o que será que ela quis dizer com preparado. Eu, preparado? Preparado pra quê? Minha mãe, por acaso, está sugerindo ... Meu Deus, não consigo entender o que seja uma tragédia. Não posso continuar aqui sentado, enxotando fantasmas. Preciso movimentar estas pernas pesadas. Andar um pouco me faria bem. Mas é como se não comandasse meu corpo, nem talvez minha vontade.

Faz bastante tempo que não ouço mais os ruídos de minha mãe pela casa. Ela também parou de me espionar. Claro, no escuro, como estou, não adiantaria de nada.

A cortina move-se bruscamente e ouço o convite que ela me faz, com sua voz seca e firme:

– Vem, Artur. Vamos jantar.

Penso em recusar o convite, fome nenhuma. É uma oportunidade, no entanto, de sair deste torpor. 

Levanto e a acompanho até a cozinha. O cheiro de alho torna-se ainda mais forte. Me parece que ela preparou macarrão alho e óleo para o jantar.

Minhas vistas se ofuscam, quando entro na cozinha: muito tempo no escuro. Ainda com os olhos espremidos e a testa enrugada ocupo meu lugar à mesa. Sem dizer nada, minha mãe serve meu prato e me estende, como ela geralmente faz. Só então percebo à minha esquerda a cadeira vazia. Fico imobilizado, um nó apertando minha garganta, uma sensação de frio subindo desde os pés.

– Tem que reagir – ela me diz quando nota que não reajo – não pode ficar assim.

Ontem à noite, eram dez e meia, mais ou menos, meu pai me disse:

– Vou dormir, filhote. Amanhã a gente termina de colar esta fuselagem. Tudo bem? Acho que a pressão não anda boa, porque estou sentindo um pouco de dor de cabeça.

Foi a última coisa que ele me disse. Faz uns quinze dias que ele vinha me ajudando a montar meu primeiro aeromodelo e faltava bem pouco para terminar, mas o modo com que ele me despenteou com a mão direita e em seguida o beijo que me deu na testa, não me deixaram insistir.

Hoje de manhã, acordei com os gritos de minha mãe que me chamava.

– Artur, corre aqui – ela dizia – depressa, menino. Seu pai está passando mal.

Quando cheguei ao quarto dos dois, ainda ouvi a sororoca emitida por sua garganta, como se ele estivesse morrendo. Já estava em coma. 

– Mãe, ele está morrendo – gritei horrorizado.

Ela estava apenas reclinada na cama e tentava amparar o corpo de meu pai, com medo de que aquela sororoca o afogasse.

A uma ordem dela, saí correndo no escuro, à cata do telefone.

– Vai – ela ordenou – vê se chama alguém, pelo amor de Deus.

Tropecei na mesinha de centro, na sala, caí, mas a tensão era tamanha que me levantei como se tivesse virado mola. E o maldito telefone, onde é que poderia estar escondido? Depois de muitos tropeções, dos pés e das mãos, meus dedos nervosos o encontraram. Mas ligar pra quem?, eu pensei em pânico. Eu não tinha ideia de quem é que poderia socorrer-nos numa hora daquelas. Era uma situação inteiramente nova, inesperada, e a sensação de inutilidade e impotência me fizeram chorar. 

Não atinava com o que fazer, quando ela chegou por trás de mim.

– Dá isso aqui! – me disse decidida. E é como se tivesse dito: Você é um imprestável, mesmo, deixa que eu chamo o socorro. "Imprestável" foi um som que não ouvi, mas que rebateu por dentro de minha cabeça como uma microfonia em volume infernal.

Tomou o telefone de minha mão e começou a discar. Então me senti salvo porque ela também hesitou, sem saber para quem apelar.

– Corre, Artur, vai chamar seu Vitorino. Mas ande, meu filho!
Seu Vitorino foi quem nos levou até o hospital. Voando, eu acho. Fiquei enterrado no banco da frente, com medo de olhar pra trás, onde minha mãe levava meu pai praticamente no colo, e descobrir meu pai morto. A sororoca tinha passado e ele parecia mais calmo, mas não se movia, o que me aterrorizava.

O vizinho se desculpou, dizendo que tinha de ir para o trabalho, mas que se a gente precisasse de alguma coisa, etcétera e tal.

Minha mãe de vez em quando sumia por uns corredores e tempos depois voltava muda como tinha saído. Não me dizia nada. Eu não me arredava daquele saguão frio, enterrado em uma daquelas poltronas, me protegendo do vento úmido que entrava pela porta. Assim passamos a manhã e bom pedaço da tarde.

Na última vez que minha mãe se embarafustou por um daqueles corredores, criei coragem e fui atrás. Em seguida ela encontrou um médico e consegui ouvir parte do que ele disse a ela. Nem tudo entendi, mas sei que tomografia é um tipo de exame e que aneurisma é uma doença muito grave. Foi isso que arrebentou na cabeça de meu pai, como ele explicou. Odeio este aneurisma. Não sei direito o que é, mas desde já e para todo o sempre odeio este aneurisma, odeio qualquer aneurisma em qualquer parte do mundo.

– Tem que reagir – ela repete, ríspida.

E a cadeira gruda na minha retina, me paralisa.

– Artur – ela grita como um trovão furioso – você está me ouvindo?

Pisco e sacudo a cabeça antes de encará-la, um gosto amargo na boca, um frio nas extremidades dos membros.

– Mãe – eu tento dizer alguma coisa, mas não atino com o quê.

– E vê se tira este boné da cabeça, menino. Quantas vezes é preciso dizer que à mesa não se usa nada na cabeça?

O sangue parece que volta a circular e o frio diminui. O mundo começa a fazer sentido.

Levanto-me sem dizer nada e arrasto para o quarto o medo e a raiva, esta tristeza sem tamanho, muito maior do que eu.
                                                                            *


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