
A coluna ESPIANDO POR DENTRO publica análises literárias feitas por Menalton Braff e publicadas originalmente na coluna VESTIBULANDOS, no site do escritor.
Livro Analisado: Macunaíma
Preparação: Prof. Menalton Braff
A obra
Macunaíma é o resultado de uma visão própria do momento que o Brasil
vivia: a negação de nossas tradições literárias, a redescoberta da
identidade brasileira em um patamar de extrema transparência e
sobretudo sem o maniqueísmo romântico. É com esse intuito que o índio
volta à cena. Mas agora o índio "mau selvagem", sem idealizações. Desse
primitivismo modernista nasce Macunaíma.
Não se estrutura como romance: conflito, desenvolvimento, solução. Por
isso, Mário de Andrade o classificou de rapsódia, pois como nas rapsódias
é constituído de quadros que se justapõem, sem que um implique o
seguinte, a não ser pela necessidade de caracterização das personagens.
Personagens:
Macunaíma é o "herói sem nenhum caráter", por ser herói símbolo,
síntese de todos os caracteres brasileiros. Nasce no fundo da mata-virgem
(índio), "preto retinto" (negro) e torna-se branco na viagem para o Sul.
Nele se concentram a sagacidade, a manha (derrota
de Piaimã - o
Venceslau Pietro Petra, mas também a tolice, a ingenuidade (os ovos do
bugio, o cocô do gambá), a malandragem, a preguiça, a sensualidade
(está sempre "brincando"). Torna-se imperador das amazonas por ter
brincado com Ci, a mãe do mato, que antes de tornar-se a Beta do
Centauro, ainda deu uma muiraquitã para o herói. Esse amuleto vai parar
nas mãos do Gigante (Venceslau), que mora em São Paulo, o que obriga
Macunaíma a uma prolongada viagem ao Sul. Por fim, sobe para o céu,
quando as margens do Uraricoera tornam-se deserto.
Maanape é o irmão mais velho de Macunaíma. É feiticeiro e livra o herói
de muitas embrulhadas em que ele se mete.
Jiguê é o outro irmão. Muito ingênuo, primeiro casa com Sofará, com
quem Macunaíma gostava de brincar. Casa então com Iriqui, que tem o
mesmo destino.
Venceslau Pietro Pietra é o Gigante Piaimã, um peruano, rico colecionador
de São Paulo, nas mãos de quem a muiraquitã vem parar. É o
estrangeiro, o invasor, contra quem Macunaíma terá de demonstrar toda
sua esperteza.
Espaço
A ação inicia às margens do Uraricoera, Norte do Brasil, onde nasceu
Macunaíma. Mais tarde, o herói e seus dois irmãos empreendem uma
viagem para o Sul, atrás da muiraquitã (o amuleto - uma pedra verde em
forma de jacaré - presente de Ci). Em São Paulo a ação se desenvolve até
a recuperação do amuleto.
Os três - Macunaíma, Maanape e Jiguê
retornam ao lugar de origem, onde se encerra a história.
Cumpre observar, entretanto, que a noção lógica de espaço é a todo
momento rompida, cruzada que é com um espaço mítico - ou mágico -
fruto do pensamento indígena. Exemplo disse é o momento em que,
fugindo de um cão, Macunaíma vai ao Rio Grande do Sul e volta a São
Paulo, correndo a pé, em poucos minutos.
Tempo
O tempo externo, histórico, de Macunaíma, insere-se no início do século,
suas três primeiras décadas. No segundo parágrafo da "Carta pras
Icamiabas", o herói, no cabeçalho da carta, anota: "Trinta de Maio de Mil
Novecentos e Vinte e Seis..." Outros elementos da história atestam a
validade dessa data: a máquina telefone, a máquina automóvel, etc.
O tempo interno, tempo narrativo, corresponde à vida de uma pessoa, do
nascimento à idade adulta. Mas isso, apenas de maneira bastante
superficial. O primeiro capítulo é do tipo panorama, que leva o herói do
nascimento até ele "brincar" pela primeira vez. Nos demais capítulos não
há mais "modificação" de sua idade. Aliás, dá-se com o tempo o mesmo
que com o espaço: cruzamento constante entre tempo cronológico e
tempo mítico - tudo pode acontecer em um segundo.
Narrador
O narrador é, em princípio, um narrador onisciente, foco narrativo em 3ª
pessoa. Mas não é tão simples assim. E o penúltimo parágrafo do
"Epílogo" é o complicador:
"Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o
homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por
isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus
carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no
mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói
de nossa gente."
O narrador só se denuncia no final, para justificar mais uma vez a
classificação de rapsódia: ele é um aedo, à maneira dos narradores
antigos das rapsódias e das epopéias, mesma função dos cantadores
populares, que, nas feiras do Nordeste brasileiro, acompanhando-se de
sua viola, narram as histórias com que encantam o imaginário popular.
Ação
Macunaíma, filho de uma tribo que vivia nas margens do Uraricoera
(Norte do Brasil), demora seis anos para falar por pura preguiça. Ao abrir
a boca pela primeira vez, foi para dizer "Ai, que preguiça". Um dia brinca
"na marra" com Ci, a mãe da mata, e torna-se o Imperador das
Icamiabas. Antes de se transformar em estrela, Ci lhe dá um amuleto, a
muiraquitã. Um dia o herói deixa a muiraquitã no alto de uma árvore e a
pedra lhe é roubada. Ao ficar sabendo do destino da pedra, inicia, em
companhia dos dois irmãos, uma viagem para o Sul (São Paulo), para
resgatar a pedra. Depois de golpes e contragolpes, entre Macunaíma e
Venceslau Pietro Pietra, finalmente o herói vence e recupera a muiraquitã.
Na viagem de volta, Macunaíma adoece. Quando chegam à aldeia às
margens do Uraricoera, não há mais ninguém. É só deserto. Através de
uma feitiçaria, ele é transformado na constelação da Ursa Maior.
Comentários
Macunaíma é composto em cima de lendas indígenas, recuperando muito
de sua linguagem e de seu modo de pensar.
Como síntese do Brasil, existem expressões das mais diversas regiões do
Brasil. São Paulo, Nordeste, extremo sul do Brasil, comparecem com seus
falares.
Sendo uma radicalização da bandeira modernista, que pregava a
aproximação entre linguagem das ruas e linguagem literária, Macunaíma
está pontilhada de expressões populares, como: "no outro dia...", "légua e
meia", "jacaré ...? Nem ...", "de já-hoje", etc.
O tom geral do texto é de paródia e o melhor exemplo, aquele em que se
explicita a intenção, é a "Carta pras Icamiabas". As flexões verbais, o
emprego dos pronomes, o vocabulário utilizado, tudo leva um ranço
"respeitoso", que lembra a linguagem escrita, "culta", ou seja,
extremamente formal, principalmente de documentos oficiais, mas muitas
vezes encontrada também em textos jornalísticos.
Várias são as passagens irônicas. Uma delas, na qual o narrador ironiza o
vezo romântico de fornecer rol de elementos da natureza, com o objetivo
de engrandecê-la, o narrador apresenta uma lista de mosquitos: "E eram
muitos mosquitos, piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas
mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada."
Estilo
Seguindo as observações de A Bosi, em sua História Concisa: "À
primeira observação, distinguem-se, na obra, três estilos de narrar:
a) um estilo de lenda, épico-lírico, solene:
No fundo do mato-virgem nasceu macunaíma, herói de nossa gente. Era
preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o
silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera que a índia
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram
Macunaíma.
b) um estilo de crônica, cômico, despachado, solto:
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis
anos não falando. Si o incitavam a falar, exclamava:
- ai! Que preguiça!...
E não dizia mais nada.
c) um estilo de paródia. Mário de Andrade toma o andamento parnasiano
típico, anterior a 22, à Coelho Neto e à Rui Barbosa e, nesse código, vaza
uma "mensagem" de Macunaíma às Icamiabas:
É São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tradicional de Roma, a
cidade cesárea, "capita" da Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés
a grácil e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão
amenos quanto os de Aquisgrana ou de Anverres, e a área tão a eles igual
em salubridade e abundância, que bem se pudera afirmar, ao modo fino
dos cronistas, que de três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.
"Passando abruptamente do primitivo solene à crônica jocosa e desta ao
distanciamento da paródia, Mário de Andrade jogou sabiamente com
níveis de consciência e de comunicação diversos, justificando plenamente
o título de rapsódia, mais do que "romance" que emprestou à obra."
E para terminar, é ainda útil recorrer ao auxílio do professor Alfredo Bosi:
"Em Macunaíma, a mediação entre o material folclórico e o tratamento
literário moderna faz-se via Freud e consoante uma corrente de
abordagem psicanalítica dos mitos e dos costumes primitivos que as
teorias do Inconsciente e da "mentalidade pré-lógica" propiciaram. O
protagonista, "herói sem nenhum caráter", é uma espécie de barro vital,
ainda amorfo, a que o prazer e o medo vão mostrando os caminhos a
seguir, desde o nascimento em plena selva amazônica e as primeiras
diabruras glutonas e sensuais, até a chegada à São Paulo moderna em
busca do talismã que o gigante Venceslau Pietro Pietra havia furtado."
O autor
"Versátil e culto, influente por seus escritos, pela atuação de homem
público e pela enorme irradiação pessoa, Mário Raul de Morais Andrade
nasceu em São Paulo, a 9 de outubro de 1893, e morreu na sua casa da
Rua Lopes Chaves, bairro da Barra Funda, aos 25 de fevereiro de 1945."
(Círculo do Livro)
Fez o curso de piano, no Conservatório de São Paulo, com o propósito de
ser professor de piano. Professor desse instrumento no mesmo
Conservatório, onde ainda era o titular de História da Música e Estética
Musical. Dirigiu o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo,
sendo o responsável pela instituição de vários serviços culturais existentes
até hoje.
Em 1938 mudou-se para o Rio de Janeiro para lecionar Estética na
Universidade do Distrito Federal.
De muito já vinham suas atividades intelectuais como a de crítico, que lhe
granjeou o respeito da intelectualidade brasileira. Foi um dos principais
articuladores e organizadores da Semana de Arte Moderna, de 1922,
tendo tido participação intensa no evento.
Grande conhecedor do folclore brasileiro, além de pesquisador da cultura
indígena, são esses os conhecimentos que lhe valem de matéria-prima
para a composição de Macunaíma.
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