sexta-feira, 29 de setembro de 2017

CONTOS CORRENTES

Desembarque

(Alice Sampaio)
  
Decidiu não levantar até que abrissem a porta. Teve que se espremer na poltrona do corredor pra dar passagem aos ocupantes do centro e da janela. Esses, como todos os outros, não abriam mão de seguir o velho “script”: levantar, catar bagagens e esperar em pé, quilos nos ombros e nas mãos, até o momento, aparentemente inalcançável, em que a fila começasse a andar.

Livre dos vizinhos, sentia nas costas e nas pernas relaxadas o sabor de seu comportamento dissonante.  A menos de vinte centímetros do braço direito, a pequena multidão apinhada produzia suor e ansiedade.

Ainda remoía esse pensamento quando percebeu que a fila começava a se movimentar. Adultos caminhavam lentamente puxando as crianças pelos braços, sacolas batiam nos passageiros de trás, malas espetavam as pernas de quem andava na frente.   

Depois de alguns minutos, que foram atravessados arduamente pelo cortejo, chegou a hora do
passageiro resistente levantar e fazer o mesmo percurso sem paradas nem solavancos.

Parecia muito satisfeito com a fluidez saboreada da poltrona até a porta. Mas parou antes de ultrapassar a soleira da aeronave, recuou e olhou perdidamente para as poltronas vazias  –  uma cena que nunca tinha tido a oportunidade de observar.

Pouco a pouco foi invadido pelo vazio deixado pela multidão e então decidiu voltar. Ia voar até o destino seguinte para ter a chance de enfrentar a fila de desembarque. Sem ela, sua viagem não estaria completa.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças