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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

CONTOS CORRENTES

O valor das luvas

(Alice Sampaio)

A mãe viu da escada quando o menino pegou as luvas que o amante esqueceu no chão da sala. Viu quando as escondeu no cós da calça e saiu apressado em direção ao jardim. Foi atrás. Ele já tinha desaparecido. A mãe não contava com isso. Era a primeira vez que o filho acordava antes da arrumação da sala. 

O fascínio do menino pelas luvas avançava junto com os ponteiros do relógio. Eram bonitas e incrementadas: couro preto vazado, acolchoado cinza nas palmas, correia de regulagem nos pulsos. Além de tudo, confortáveis e antiderrapantes: dava pra fazer saltos e curvas radicais. Diante dos outros, seu valor duplicava: faziam qualquer um se sentir campeão de MotoCross, mesmo que estivesse pilotando uma bicicleta.

Foi fácil adivinhar o que pedalava na cabeça dele: correr para impressionar a gata do grupo de bike. Se a mãe não agisse com rapidez e engenho, seria tarde. O menino daria as luvas de presente à namorada.   

Correu até a casa da garota, arquitetando histórias para resolver o problema sem se denunciar. Ninguém. Passou em frente ao ponto das bikes. Vazio. Foi ao clube. Nada.

A garotada estava na praça do condomínio vizinho. Era a primeira etapa do campeonato do bairro. O menino entrou calçado e pedalou com estilo. A notícia se propagou à velocidade da luz. No fim da manhã, meio bairro já tinha ouvido falar nas luvas importadas. Começaram a surgir compradores. Ele

sexta-feira, 8 de junho de 2018

CONTOS CORRENTES

O sofá amarelo



Na casa do meu avô tinha uma sala de visitas. Era a sala mais bonita da casa, mas quase não se usava. Os amigos “íntimos” preferiam ficar na copa ou na varanda dos fundos. Os “de cerimônia”, na sala de estar. As outras crianças viviam no quintal. Conto tudo isso pra provar por A mais B que a sala bonita acabou sendo só minha.

Eu sempre ia pra lá pensando em estudar. Mas aí me distraía olhando os móveis ou desenhando espirais e margaridas no caderno. Um dia eu estava imaginando como “a minha sala” ficaria se passasse por uma reforma. Era tudo bonito como estava, mas eu tenho essa mania de sempre querer mudar.

Para começar pintaria as paredes de branco porque nunca gostei de amarelo. Depois, trocaria o lustre de cristal por uma lanterninha de ferro, tipo lampião, que vendia no mercado. O enorme sofá amarelo e suas poltronas gordas seriam substituídos por um móvel moderno, com colchão coberto de lona verde, pra que eu pudesse dormir ali quando estudasse até tarde. Almofadas bem macias serviriam de encosto e gavetas na lateral esconderiam meus livros e papéis.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

CONTOS CORRENTES

Na casa do meu avô tinha uma sala de visitas. Era a sala mais bonita da casa, mas quase não se usava.
Os amigos “íntimos” preferiam ficar na copa ou na varanda dos fundos. Os “de cerimônia”, na sala de estar. As outras crianças viviam no quintal. Conto tudo isso pra provar por A mais B que a sala bonita acabou sendo só minha.

Eu sempre ia pra lá pensando em estudar. Mas aí me distraía olhando os móveis ou desenhando espirais e margaridas no caderno. Um dia eu estava imaginando como “a minha sala” ficaria se passasse por uma reforma. Era tudo bonito como estava, mas eu tenho essa mania de sempre querer mudar.

Para começar pintaria as paredes de branco porque nunca gostei de amarelo. Depois, trocaria o lustre de cristal por uma lanterninha de ferro, tipo lampião, que vendia no mercado. O enorme sofá amarelo e suas poltronas gordas seriam substituídos por um móvel moderno, com colchão coberto de

lona verde, pra que eu pudesse dormir ali quando estudasse até tarde. Almofadas bem macias serviriam de encosto e gavetas na lateral esconderiam meus livros e papéis.

Foi quando cheguei nesse ponto que a história realmente começou. Senti meu corpo vibrando de fora pra dentro. Como se tivesse andando num jipe velho, por uma estrada de piçarra. Pensei logo que podia ser um terremoto. Nunca tinha visto um, mas a descrição que eu li não estava longe daquilo.

Antes que eu descobrisse sua razão, a tremedeira estancou! Ouvi um ‘bom dia’. A voz era grossa, firme e ao mesmo tempo terna. Preferi pensar que fosse alguém na varanda da frente ou no jardim. Mas desde o começo eu já sabia que ela saía do sofá. Ali mesmo onde eu estava sentada.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

CONTOS CORRENTES

Amanhã tem mais
 (Alice Sampaio)
  
Sai correndo com relógios, brincos, pente e celular na mão. Fecha a porta da casa quase derrubando tudo, pega o elevador, desce na garagem, entra no carro, põe cinto, liga o motor, acelera e põe a cara na rua. Precisa recuar porque vem entrando outro carro pelo mesmo portão. Encosta na parede, espera o outro estacionar e retoma a posição central.
            Desce a ladeira, vira à esquerda entra na avenida e.....quase consegue passar pela direita,  mas o sinal fecha antes. Aproveita pra colocar o relógio e os brincos. Sinal aberto, retoma a corrida, pega a dianteira pra entrar à esquerda... Engarrafou. Rapidamente põe o celular na bolsa.
Trânsito escorrega pra frente, exige atenção, mas pára de novo. Pausa pra esperar desafogo; hora de pentear o cabelo. Celular toca, babá diz que menino não quer fazer lição. Trânsito anda, ligação cortada no meio da conversa. Chega o sinal. Liga pra casa, negocia um sorvete, distrai o adversário, caminho retomado.
Corredor livre, quilômetros de alívio, novo sinal. Trave à vista, mais quatro ou três dribles e estamos lá. Será? Carro na garagem, elevador lotado, redação. Reunião de pauta, repórter chama da rua, tudo engatilhado! Novo recuo......é preciso derrubar a pauta porque a

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

CONTOS CORRENTES

O pior conto do mundo
(Alice Sampaio)

Amigos são pra essas coisas. Não precisa se emocionar. Nem me agradecer. Vim aqui pra ajudar. Não se preocupe em me recompensar depois. Só quero que você fique logo boa, assim tipo levanta, sacode a poeira e dá volta por cima.

Fique tranquila. Já entendi que você está agradecida, não precisa apertar minha mão. Se sentir algo diferente, por favor me avise. É só falar. Não consegue, claro, desculpe. É só me avisar com um gesto ou um olhar. Para bom entendedor, meia palavra basta.  Seu filho me pediu pra ficar ligada em você. Não vou arredar pé daqui.

Lembra daquele nosso chefe baixinho? Seu médico parece com ele. Você reparou? A cara de um, o focinho do outro. Só um minuto. Entrou mensagem no WhatsApp. Mas não se preocupe. Tô aqui com um olho na chave e outro na fechadura. Nada vai te acontecer. O que tá difícil mesmo é aguentar esse aperto na minha mão. Não precisa disso, criatura, não precisa me agradecer.  Fique tranquila, eu já entendi. Quando você ficar boa, me convida pra jantar num restaurante bacana.  Pronto. Uma mão lava a outra e as duas lavam os pés. Tranquila. Pare de agitar a cabeça. Assim não consigo ler a mensagem.

Ok, respondido. Mas como eu ia dizendo, não se agite, tudo vai passar e depois da tempestade vem a bonança. Vamos lá, solte minha mão. Estou ficando com dor na coluna de tanto me envergar. Respire fundo e acredite: quem espera sempre alcança. Pense também que Deus dá o frio conforme o cobertor. Se estamos passando por isso, é porque dá pra aguentar.

Não. Não faça assim. Fique quietinha, a noite é uma criança. Vamos lembrar dos velhos tempos. Sabe Ronaldo? Reapareceu do nada e queria que eu saísse com ele. Você acha? Eu, hiem! Quem vive de passado é museu. Tá velho, gordo e careca. Foi depenado pela ex-mulher.

Amiga, não tá nem ouvindo o que eu digo, né? Só quer apertar minha mão. Relaxe. Já disse que daqui não arredo pé. Quem tem amigos tem tudo. Opa, outra mensagem no grupo da academia.  O pessoal

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

CONTOS CORRENTES

Dona Anita                
 (Alice Sampaio)

Era véspera de ano bom. Logo cedo, Dona Anita passou folhas de pitanga na casa pra varrer o ano velho. Minutos antes da virada, o trabalho tinha que ser repetido com alfazema, pro dia primeiro chegar com energia renovada.

A vida dela era assim: quando não tava fazendo comida ou lavando roupa, cuidava das coisas invisíveis que afetam lugares e pessoas. Fez isso desde pequena. Aos setenta e tantos anos, já nem sabia mais como tinha aprendido tudo aquilo. Talvez com a mãe, com a avó, ou com a vida.

Usava arruda pra espantar o mau olhado, ‘quebranti’ e ‘espinhela caída’. Noite de terça, a rua ficava lotada. A neta, Edineide, era quem organizava a fila. Sentada na balaustrada da varanda, anotava o nome de quem chegava e depois ia chamando, um por um. O povo esperava sentado na calçada. Tinha vez que dona Anita ia dormir às duas da manhã. Mas não reclamava.

Tarde de quarta, dia de Iansã, ela recebia gente com doença natural, pra curar por chá ou por banho. Quem organizava os pacientes na porta era o bisneto Josemar. Edineide não

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

CONTOS CORRENTES

Desembarque

(Alice Sampaio)
  
Decidiu não levantar até que abrissem a porta. Teve que se espremer na poltrona do corredor pra dar passagem aos ocupantes do centro e da janela. Esses, como todos os outros, não abriam mão de seguir o velho “script”: levantar, catar bagagens e esperar em pé, quilos nos ombros e nas mãos, até o momento, aparentemente inalcançável, em que a fila começasse a andar.

Livre dos vizinhos, sentia nas costas e nas pernas relaxadas o sabor de seu comportamento dissonante.  A menos de vinte centímetros do braço direito, a pequena multidão apinhada produzia suor e ansiedade.

Ainda remoía esse pensamento quando percebeu que a fila começava a se movimentar. Adultos caminhavam lentamente puxando as crianças pelos braços, sacolas batiam nos passageiros de trás, malas espetavam as pernas de quem andava na frente.   

Depois de alguns minutos, que foram atravessados arduamente pelo cortejo, chegou a hora do