
(Shellah Avellar)**
Ella era a única mulher ali naquela bizarra e nada gentil reunião.
Todos se levantaram e a deixaram só.
Suspirou aliviada. Era o início de uma vitória.
Há alguns bons anos tentara introduzir seu ponto de vista naquela comunidade.
Mas aqueles aldeões carregavam estereótipos e preconceitos alimentados através de séculos de patriarcado, em relação a qualquer figura feminina.
As expressões endurecidas. As cicatrizes do vento que sulcavam as faces dos lavradores eram iluminadas pela lua, que, intrusa, teimava em acender aqueles olhos desesperançados.
O cheiro da terra molhada impregnava o casebre. A fogueira, lá fora, ardia seus carvões estertorosos após a chuva.
Seu apelo por liberdade fora ouvido. Isto é o que importava.
Seus olhos disparavam, errantes, maravilhados. Ella viera para ser feliz, e assim já se
sentia.
A magia de poder se exercer como mulher integral em pleno século XVIII.
Soltar seus cabelos. Esvoaçar suas saias. Correr célere pelos campos, sem horário para voltar.
Ninguém a esperava. Nenhum marido retrógrado. Nem pai. Nem irmão.
Mas a certeza de que era dona de seu destino. De poder ir e vir, quando lhe aprouvesse. Conquistar o direito de ler seus livros em paz e exercer o ofício de escrever.
Convenceu-os de que, apesar de não chegar a ter sucesso deste jeito, falharia em qualquer outro.
Era a arte se impondo aos brutos da aldeia.
Todos pararam para ouvir seu manifesto de dor, em que versava:
“O trabalho árduo me oprime.
Mas liberta em mim a poesia.
Que insiste em brotar
De minhas mãos calosas,
E de meu coração de esterco.
Grito.
Semeio flores
Na aridez do mundo dos homens.”.
*Texto de homenagem à escritora inglesa Jane Austen, que nasceu em 16 de dezembro, 242 anos atrás, em 1775. Austen é autora de romances clássicos da literatura mundial, como “Razão e Sentimento”, “Orgulho e Preconceito”, “Persuasão” e “Emma”. Ela faleceu em 18 de julho de 1817, aos 41 anos.Portanto, 200 anos sem Jane Austen.
**Shellah é arquiteta e profissional de comunicação. Este conto foi publicado originalmente no VOL 3 Da ANTOLOGIA PALAVRAS ABRAÇADAS, da Editora Scortecci, lançada na 24a Bienal do Livro de SP, 2016 e agora enviado a nós para publicação pela própria autora.
Muito bom o conto, nos da a sensação da liberdade pela liberdade, valeu!
ResponderExcluirGratidão pelo comentário,Germano!Na verdade,sempre que uma personagem se apresenta,carrega um pouco de nós em seu cerne.Liberdade é minha palavra-chave.Espero tê-la usado apropriadamente ao longo de minha vida.Abs kósmikos!
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