(Virgínia Finzetto)
primeiro movimento
Há dias o sol não aparecia, e no ar um cheiro forte de
tempestade se aproximava. Em outras épocas ela não teria dado tanta importância
ao fato bastante corriqueiro na aldeia. Hoje, ambas, ela e aldeia, não eram as
mesmas. Uma aridez infinita havia invadido suas terras, e o pouco que brotava,
dando pequenos frutos, fora profanado, arrancado por quadrilhas de ladrões e
legiões de vampiros que invadiam a região todos os dias. E ainda aproveitavam e
abusavam dela e dos seus, sem piedade. Seu útero era uma ferida aberta cuspindo
tanto sangue, que ela perdeu a noção da diferença entre o que era fruto da
violência do que era sua menstruação. Lilith em dilúvio. Ela ainda ovulava.
segundo movimento
outrora da grota que sangra
agora brota lágrima
gota a gota
de angra
Talvez por isso a cena de um dilúvio iminente, segundos
antes de acordar. Sonhou que havia uma nave imensa em seu quarto, de proporções
irreais. Do alto uma voz lhe dizia que poupasse apenas as suas partes, pares e
ímpares, abrindo mão de vizinhos adormecidos em distrações e promiscuidades e
de qualquer bandido declarado, isento ou não de paixões. Ela entrou, mas ainda
não havia acordado.
terceiro movimento
Aquela voz, cuja imagem não era visível, ordenou que se
lacrasse a nave por fora, e ela permaneceu em seu interior. A princípio
claustrofóbica, pôs-se a gritar e a se debater entre suas próprias duras e
resistentes paredes corporais, enquanto apenas os seus, que a ouviam, não
podiam ajudá-la, pois entregues ao comando do alto estavam aceitando ficar
trancafiados juntos, em total silêncio e vigília.
quarto movimento
Aos poucos, calma e aceitação vieram acudi-la, ao mesmo
tempo em que o barulho do estrondo do dilúvio externo quase lhe arrebentou os
tímpanos. A força de todas as águas que caíam trincaram suas defesas naturais e
ela se prostrou de joelhos, em oração, enquanto tudo que ficara do lado de fora
ia sendo liquidado com a língua de raio de uma justiça que até então ela
desconhecia. Coisas que jamais voltaria a encontrar. Choveu quarenta dias e
quarenta noites sem parar.
quinto movimento
Ela pressentiu quando a nave se elevou com as águas, e
nenhum dano lhe atingiu. A turbulência exterior contrastava com o acomodamento
interior de seu corpo. O sangue e a urina haviam se estancado, agora em
reconciliação. Mas ainda não podia tocar todas as suas outras partes, em
suspensão, que aguardavam sua própria hora. Alisava freneticamente seu monte de
Vênus, na intenção de tirar os vestígios de toda invasão a que fora submetida
até então. Lá fora já não havia cumes.
sexto movimento
Ela ainda não acordara quando a porta da nave se abriu. Em
silêncio soube de súbito que a única maneira de não sentir mais nenhuma dor
emocional era deixar que ela doesse até que ela mesma a levasse à origem,
única, de todas as outras dores, cuja resposta sempre esteve dentro de si
mesma. Há urgência no encontro do amor verdadeiro, porque atravessar tudo isso,
de mãos dadas, é a mais produtiva das parcerias. ...deus gosta!
sétimo movimento
E quando toda água diluviana baixou em segurança, a voz
pediu que ela abrisse os olhos, pois haveria de ser por essas janelas que
entraria a luz da revelação, conforme a promessa que ouviu:
muitas vezes, e tantas vezes,
quão indivisíveis e indizíveis
são meus amores
como arco-íris, eles se escondem nos céus,
e aparecem aos incrédulos, vez ou outra,
em sete cores
E ela renasceu em segurança e em total comunhão com o que
sempre lhe pertencera.
*Este conto integra a coletânea COLETIVO, publicado pela
Scenarium Livros Artesanais, em 2017.
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