viajante
(Shellah Avellar)
Felinto Callado era ranzinza, desleixado e rico, com uma
casa empoeirada e lúgubre. De índole ácida, não era uma daquelas pérolas da
existência e já vivera sessenta anos num mundo com muito pouco a deixar para a
posteridade, a não ser desânimo e rudes palavras.
Era o solteirão caçula de três filhos de um pai ausente e
mãe depressiva. E, em virtude do casamento bem-sucedido dos irmãos mais velhos,
acabou tomando o lugar do pai na casa e na vida da família, desde seus quarenta
anos.
O pardo gato Ludovico parecia ser o único objeto de afeto de
Felinto, o único que dava uma atenção sonolenta às suas lamúrias diárias.
Tudo transcorria na mais desolada rotina, até que, naquela
noite fria e chuvosa, o sino da porta de madeira pesada e carcomida tocou
insistentemente às três da madrugada.
Felinto se espreguiça. E, entre irritação e apreensão, se levanta da
cama num salto. Olha o relógio e mastiga alguns palavrões. Veste o roupão
desbotado e desce as escadas. Despendura o bastão esquecido na parede do hall.
Recorda-se languidamente de sua paixão adolescente pelo beisebol.
Acaricia o
bastão por alguns instantes. Sorri, talvez pensando em alguma velha conquista e
finalmente desce, pé ante pé, as escadas cobertas por uma passadeira rota, com
suas ridículas chinelas de lã quadriculada.O sino continua a tocar insistentemente. Ele abre a porta, não sem antes tentar verificar através do vidro embaçado a figura, cuja sombra não deixava entrever nenhum detalhe mais esclarecedor sobre a visita intrusa.
Um homem alto. De olhos verdes penetrantes, pele dourada
pelo sol, barba por fazer e lábios ressecados. Completamente encharcado,
embrulhado num casacão verde-exército e gorro enterrado na cabeça, balbucia um
rouco: “Olá!”.
Felinto não responde. Faz um gesto para o estranho, que
entre e descalce as botas enlameadas. Indica o mancebo para que ele despendure
o casaco. E o armário para descansar a mochila enorme.
Resmunga entre dentes: “O lavabo é ali. Tire suas roupas.
Vou providenciar toalha e roupas secas. Há um banheiro com chuveiro nos fundos,
caso queira se lavar”. E sobe rapidamente as escadas, levando consigo o bastão de
beisebol.
O estranho agradece sem sorrir e fixa o olhar em Felinto.
Tira o gorro, de onde jorram cachos abundantes de um cabelo louro incrivelmente
luminoso que lhe cai pelos ombros.
Ludovico aparece. Ronrona e roça as pernas e pés do rapaz,
que aparenta ter menos de trinta anos. Some para debaixo das escadas, onde se
enrosca e volta a dormir. O rapaz olha para o gato com indiferença e vai para os
fundos da casa.
De cabelos alvoroçados, Felinto desce as escadas vagarosa e
sinuosamente. Deixa entrever o peito magro, com penugem esparsa pela camisa
semiaberta de seda com mangas bufantes, deliberadamente parte para fora e parte
para dentro da calça apertada de veludo cotelê azul-marinho.
Pés descalços, traz no braço esquerdo toalhas felpudas e um
roupão novo em folha para o hóspede enigmático. E com o braço direito segura o
bastão.
O rapaz entra na sala nu, com o corpo molhado. Há um brilho nos olhos de Felinto, que denota um prazer
incontrolável.
Deixa cair as roupas e desliza a mão esquerda para o sexo do
rapaz, que intumesce rapidamente.
O rapaz pega o bastão e arrasta Felinto para o sofá. Arranca
o xale poeirento e deixa o veludo de vermelho vivo à mostra. Descansa o bastão
no sofá.
E escorrega seu corpo molhado sobre Felinto, que
sofregamente explode de prazer num riso solto.
Felinto adormece.
O moço se levanta. Veste as roupas secas. Coloca o casacão e
o gorro. Ajeita as alças da pesada mochila nas costas musculosas.
Rodopia, como a fazer um arremesso. Ergue o bastão violentamente e levanta o braço direito, como
a rebater seu próprio arremesso. Dá uma lambida no bastão. Coloca-o no tapete da entrada e
vai embora furtivamente, sem olhar para trás.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças