Conto publicado na Antologia Solidária Barretos.
A prenda
(Marcos Diamantino)
O que se passou me foi dito por uma avó, portanto não acrescentarei pontos fictícios nesse relato. Seria mais didático se me colorissem a tenra idade com aventuras de Peter Pan, mas não teria experimentado, logo cedo, o pavor que uma história pode causar.
Vó Mariana relatava o fato com tal imersão que fazia supor esconder-se atrás de seu magistério uma excelente narradora.
Era um sétimo dia de janeiro daquele ano mais ou menos remoto. Nem os aguaceiros da temporada serviam para deter a realização da festa na frente da igreja. A previsão de tempestade para aqueles dias talvez impedisse algo, mas as beatas incluíam, em suas rezas no genuflexório, o pedido de não pingar uma gota sequer durante o período da quermesse em louvor ao padroeiro.
Tudo foi organizado com esmero na intenção da renda ser revertida à paróquia para a pintura da igreja, a mesma que me acolhe aos domingos e que, como uma velha árvore, vive descascando.
Fazendo as vezes de coreto a laje que cobria os mictórios enterrados recebia a apresentação da banda. Naquela temporada já sem o magnífico Realindo que havia trocado a tuba pela harpa celestial.
Às vezes misturo as festanças do tempo de minha bisavó com as atuais de minha avó. Mas festança tem bandeirinhas de papel de seda tremulando nos varais e aquela antiga também as devia ter. Assim como fitas de papel crepom.
O movimento da quermesse começava com a gritaria das prendas e leiloeiro que se preza eleva franguinho à categoria de peru.
A incumbência de providenciar grande parte das prendas coube a dona Genoveva, paroquiana praticante, genitora de dona Mariana, minha avó.
Ocorreu que naquela quermesse fatídica a bisa dona Genoveva achou que os frangos morenos, as batatinhas fritas, os pastéis recheados, as mandiocas douradas e até as leitoas crocantes eram insuficientes para confirmar a excelência de seus dotes culinários e a magnitude de sua ardorosa devoção ao padroeiro. Então a dedicada mulher decidiu preparar um tacho de arroz-doce, a
mesma iguaria que fez o padre Lourenço repetir a xícara salpicada de canela em pó.
Os pratos de doce ainda quentes, exalantes de aromático vapor, foram colocados sobre a mesa de madeira da varanda. A brisa que movimentava as avencas no entorno refrescaria os doces prometidos para o leilão daquela noite. A bisa Genoveva voltou no momento em que abelhas começavam a girar
sobre os doces. Para seu desapontamento, faltava um dos pratos.
Armou-se de um galho fino de jabuticabeira e saiu à procura do ladrão. Foi dar com ele escondido atrás do galinheiro lambendo o prato de ágata em flagrante delito. Deve ter entornado o doce com gana devido aos resquícios do caldo grudento nos dedos e nas bochechas encardidas.
- Tu me pagas, ladrãozinho duma figa! – disse minha bisavó ao fitar o menino com a vasilha na mão.
- Não me bate, dona Genô!
As súplicas do moleque de nada adiantaram. As lambadas de vara comiam em suas pernas, mas respeitaram a barriga estufada.
Olhos arregalados observaram a cena amoitados entre as bananeiras. Mas permaneceu quieto o vulto entre as folhagens, pois se fez algum ruído foi quando da correria para ver o que se passava.
Dona Genoveva enxugou o suor da testa e do buço e liberou o menino da coça. A bisavó tomou o prato limpo, atirou longe o galhinho de jabuticabeira e não demorou para sentir o seu coração coberto de arrependimento.
A mãe do moleque era o vulto espreitado e foi ter com o filho no casebre em que moravam nas imediações da chácara de dona Genoveva.
Todas as rezas do rosário às barras das vestes dos santos do oratório não serviram para aplacar a dor de consciência de minha bisavó.
Poderia ter levado a arte ao conhecimento dos pais do menino e jamais ter chegado àquele extremo.
A senhora Genoveva estava decidida a pedir desculpas pelo ato impensado. Diria à mãe do menino que estava tão envolvida ajudando a igreja que perdeu a cabeça.
Dois dias depois, cruzou o pasto, transpôs a pinguela sobre o riacho e chegou ao lavrador Donato, pai do menino, que capinava o mandiocal ao lado do seu rancho.
- Boa tarde, Donato!
- Tarde, dona Genô. A senhora?
- Vim falar com a Carola. Ela está em casa?
- Saiu agorinha, dona Genô.
- Pois tenha o obséquio, Donato, de dizer que preciso falar com ela.
- Pode deixá, dona Genô! Vou pedir pra Carola procurá a senhora, então?
- Se não incomodar...
Frisei que cabia mais a minha Vó Mariana um fardão de escritora do que um jaleco de mestra. Quisera ter eu o dom de contar casos como ela.
Não balbuciava ao descrever que em um 13 de janeiro, dona Genoveva recebia a visita da vizinha Carola. Genoveva estava na tarefa de regar as roseiras e enxugando as mãos no avental foi atender ao portão.
Demonstrou satisfação ao ver a oportunidade esperada. Conduziu Carola para o interior da casa e desculpou-se pelo ocorrido.
- Espero que não me guarde rancor...
- Não vou fazer conta disso, dona Genô. Moleque arteiro sossega com prensa
mesmo...
Genoveva foi à cozinha e arrebatou o bule da chapa do fogão à lenha ainda
quente e serviu café à visita.
- Queria que não arreparasse, mas trouxe uma coisa para a senhora... - disse
Carola, erguendo a vasilha amarrada com pano de prato.
- É arroz-doce! – exclamou a bisa Genoveva.
- Mas não é tão gostoso quanto o da senhora. – disse Carola denotando
humildade.
Dona Genoveva percebeu a ironia do destino, mas pensou que o doce que quase azedou uma convivência, poderia muito bem servir para apaziguar a situação.
Enquanto a visita tomava café, Genoveva pegou um pratinho paraexperimentar o presente. Ingeriu a primeira porção do doce, elogiou a doceira e até a convidou para colaborar com as quermesses da paróquia.
- Está uma delícia, Carola...
Vó Mariana conta que a desconfiança surgiu tempos depois de minha bisavó adoecer. Sem causas para a enfermidade da bisa Genoveva, os mais próximos a questionavam de todas as formas até que ouviram dela a história do arroz-doce. A bisa Genô ainda acrescentou que o bom daquele doce foi aliviar um pouco o seu espírito. Mas os parentes desconfiaram.
Porém não poderiam nem mesmo investigar se, por suposta vingança, Carola colocara alguma substância nociva no doce. A vizinha mudou-se com o esposo Donato e o filho e nunca mais ninguém teve notícias deles. O fato é que, depois do arroz-doce, a bisavó foi definhando até morrer.
O espanto tomou conta dos familiares quando nos últimos dias da bisavó encontraram sob a pele dela dezenas de agulhas, umas pequenas, outras maiores. Havia também agulhas que pareciam sair da barriga dela. A situação estranha ficou sem explicação, embora muitos a relacionassem ao caso do
arroz-doce...
Estudiosos hoje explicam que são as próprias pessoas envolvidas em fenômenos como esse que se espetam de propósito. Será que minha bisavó na verdade não se desculpou pelo fato de surrar o menino da vizinha e se penitenciava daquela forma?
Só sei que não foi uma história inventada pela minha Vó Mariana. Outros da família lembram o caso, mas bem que minha avó, uma excelente contadora de causos, poderia, sim, ter acrescentado à história detalhes saídos de sua fértil imaginação.
Menalton, obrigado. Um abraço, com todas as letras.
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