sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

CONTOS CORRENTES

O valor das luvas

(Alice Sampaio)

A mãe viu da escada quando o menino pegou as luvas que o amante esqueceu no chão da sala. Viu quando as escondeu no cós da calça e saiu apressado em direção ao jardim. Foi atrás. Ele já tinha desaparecido. A mãe não contava com isso. Era a primeira vez que o filho acordava antes da arrumação da sala. 

O fascínio do menino pelas luvas avançava junto com os ponteiros do relógio. Eram bonitas e incrementadas: couro preto vazado, acolchoado cinza nas palmas, correia de regulagem nos pulsos. Além de tudo, confortáveis e antiderrapantes: dava pra fazer saltos e curvas radicais. Diante dos outros, seu valor duplicava: faziam qualquer um se sentir campeão de MotoCross, mesmo que estivesse pilotando uma bicicleta.

Foi fácil adivinhar o que pedalava na cabeça dele: correr para impressionar a gata do grupo de bike. Se a mãe não agisse com rapidez e engenho, seria tarde. O menino daria as luvas de presente à namorada.   

Correu até a casa da garota, arquitetando histórias para resolver o problema sem se denunciar. Ninguém. Passou em frente ao ponto das bikes. Vazio. Foi ao clube. Nada.

A garotada estava na praça do condomínio vizinho. Era a primeira etapa do campeonato do bairro. O menino entrou calçado e pedalou com estilo. A notícia se propagou à velocidade da luz. No fim da manhã, meio bairro já tinha ouvido falar nas luvas importadas. Começaram a surgir compradores. Ele
achou que não devia vender o que não era seu. Depois, pensou melhor: com o valor das luvas mais o da bike velha, dava pra comprar uma bicicleta de marcha.

Achou mais seguro não aparecer pro almoço. Nem de tarde. A agonia da mãe avançava junto com os ponteiros do relógio. Faltavam poucas horas pro seu segundo encontro com o playboy quarentão. Foi de novo ao ponto das bikes. Dessa vez, encontrou todos lá. Estava aflita demais para se preocupar com disfarces. Chamou o filho e pediu as luvas na lata. O menino vacilou. A mãe encarou. Ele prometeu entregar na hora do jantar e foi atrás do cara pra tentar desfazer o negócio. Ela voltou pra casa aliviada.

De longe, viu a janela aberta. O carro azul parado na porta anunciava que seu programa da noite estava se desmanchando. Entrou na sala e beijou o marido, fingindo estar feliz com a volta antecipada. Correu pro computador. Tinha que avisar ao playboy antes que ele saísse do escritório.

O amante ainda lia a mensagem quando a secretária anunciou a chegada do vendedor de coisas roubadas. Ops, importador.
- Achei que o amigo ia se interessar.
- Iguaizinhas às minhas, cara. Manda outra coisa.
- Mas o amigo pode guardar pra quando as outras se estragarem.

Uma inquietude repentina desmanchou a certeza inicial do playboy. Tinha esquecido as luvas na casa da amante. Lembrou o aviso de que o marido tinha chegado e imaginou que não teria acesso às luvas enquanto ele não viajasse outra vez. Ou, pior, ainda, pensou que talvez ela as tivesse jogado fora pra não levantar suspeitas. Compreendeu que, de uma maneira ou de outra, aquelas estavam perdidas. Pelo menos se ele quisesse manter sua relação com a mulher casada.

- Pro amigo eu faço 700.
- Cacete. Não imaginei que eu tivesse que pagar tão caro para obter um passe de acesso à casa dela.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças