O BEIJO DE MÁRMORE*
(Mariza Baur)
Mesmo num dia como o de hoje, sabia que Hemingway
tinha razão. Paris é uma festa. Acordou cedo. Pensando bem, nem dormiu. Os
diálogos do passado insistindo em seus ouvidos, a martelar saudade. A manhã
seria intensa. Agasalhou-se, tomou um gole de café, nem tocou no croque monsieur, saiu. O ar frio invadia
os pulmões, castigava a alma. Mas sobre os telhados de ardósia havia sol e
havia azul a confortá-lo, quando atravessou a praça mais bonita de Paris. Decidiu pegar o metrô. Desceu na
Estação Varenne, caminhou alguns
metros, parou diante do número 77, e disse para si mesmo: Eis-me aqui de novo.
Nem os dois graus de temperatura desta manhã me fariam desistir de voltar. Pena
que as roseiras estejam dormindo.
- Para escrever basta uma primeira frase verdadeira
- ele acabara de dizer, plagiando Hemingway.
- Paris é uma festa, acertei? – Letícia indagou.
Sorriram, olhar cúmplice.
- E para pintar, ou fazer uma escultura, o que se
precisa?
Ela permaneceu quieta, ele
continuou:
- Literatura ou pintura, qual a arte mais
importante? Dizem que é a pintura. Antes de escrever é necessário pintar. Não
se escreve uma história sem que esteja emoldurada na memória. E você, Letícia,
o que acha?
A conversa combinava com o lugar. Já tinham ultrapassado Os Portões do Inferno,
nos jardins de Rodin duas mil rosas explodiam em vermelho, o perfume forte a
sufocar O Pensador. Primavera em Paris. E,
agora, o sagrado-profano, clichê antigo, brotava do mármore branco, diante dos
seus olhos.
Subiu a escadaria do Museu, queria rever O Beijo. Erotismo
misturado à ternura nos corpos enlaçados. Tinha certeza, foi ali o princípio de
uma história, emoldurada na lembrança. Cinco anos antes, o dia começara sob os
plátanos, atrás de um quebra-nozes. Ele queria um quebra-nozes para as nogueiras
da estância. Não resistiram às delícias da Fauchon,
camembert, foie gras, cerejas e um
Bordeaux, eles subiram os degraus da
Madeleine, já ansiando pelo prazer de saborear queijo, vinho, patê e pedindo
perdão pelo pecado da gula que cometeriam mais tarde no apê de Saint-Germain-de-Près.
- Seria Camille Claudel nos braços de Rodin? diga,
Letícia, o que pensa a respeito?
- Pode ser que sim, pode ser que não - ela respondeu,
sem tirar os olhos da escultura. Ficava mais bonita em momentos como este,
procurando uma resposta:
- Lembra das Oficinas Literárias? A arte deve
transcender à vida. Mas bem que a vida pode imitar a arte.
Ele gostava de provocá-la:
- Então, se não for Camille, quem seria a mulher
beijada daquela maneira?
Ela riu da insistência, como se dissesse que
importância tinha se a mulher representada era Camille, outra amante, ou uma
dançarina de Pigalle, se a escultura era comovente.
- Podia, simplesmente, ser uma ideia de mulher, de
um homem e de um beijo, não podia?
- Um beijo universal com todas as contradições da
vida - ele rebateu.
- Ou um beijo de tirar o fôlego pela eternidade?
- Um beijo que significa mais que um beijo.
- Duas bocas e um só céu, não foi Drummond que
escreveu assim? – ela perguntou baixinho, quase num murmúrio, indagação que era
mais uma certeza e embutia um pedido.
Era a deixa para que ele declamasse:
- A língua
girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.
O Beijo de mármore o intrigou desde o dia em que o viu
estampado, num postal. Era adolescente, ainda não tinha beijado ninguém e ficou
fascinado. Será que beijaria uma mulher
daquele jeito? A resposta ele soube
naquele dia, em Paris. Haviam combinado na véspera, o roteiro era intenso:
quebra-nozes, Fauchon, missa na Madeleine, almoço no bairro dos pintores,
passeio pelo erotismo de Pigalle,
terminariam o dia no Museu Rodin.
O Beijo
sempre me deixa intrigado - ele confessou - dizem que a obra é inacabada. O que
estaria faltando?
- Quer saber mesmo o que falta? Beijo é o que falta - Letícia disse e corou. Coraram.
Beijaram-se, ali, diante do Beijo e foram se beijando pelas esquinas de Paris; duas
bocas num céu único.
Ele precisou rever O Beijo para sentir o que era
falta. Compreendeu o que já sabia. Na cama de Paris, eles foram Rodin e
Camille, Sartre e Beauvoir, Hemingway e sua amada, Abelardo e Heloisa. Foram
todos os amantes de Paris.
* Vencedor, na categoria conto, do Concurso Literário do Club Paulistano, em 2011.
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