segunda-feira, 16 de setembro de 2019

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff.

Um zero à esquerda


Foi mais ou menos como me senti por alguns minutos em uma das viagens que andei fazendo no ano passado. Cheguei à cidade cheio de empáfia, pois era a atração daquela noite. Um dos organizadores do evento me tratou cavalheirescamente, providenciando lugar onde poderia descansar algumas horas, informando-me da programação, pondo-se a meu dispor para qualquer necessidade. Depois de me fornecer o número de seu celular, o telefone do escritório onde se concentravam os organizadores, e o celular do motorista, que a qualquer hora eu poderia chamar, retirou-se com muitos salamaleques.

Depois de um banho rápido, tentei dormir. Quem disse! Com tratamento VIP como aquele, minha excitação foi tanta que Morfeu, espantado, fugiu para muito longe. Eu estava deslumbrado.

Trinta minutos antes da hora marcada para o início da palestra, lá estava eu no recinto do evento, muito provavelmente atrapalhando os organizadores que a todo custo tentavam esconder-me de quem ia chegando. Por fim, com muita delicadeza, entregaram-me a um professor que estava por ali sem fazer nada e que foi instruído a me fazer companhia numa lanchonete vizinha.

Depois de sentados, feitos os pedidos, meu guardião não se sofreu e tentou satisfazer a própria curiosidade.

- O senhor é o escritor? - me jogou a pergunta na cara.


Respondi que sim, que viera até sua cidade a convite dos organizadores. Ele continuou encarando-me.

- Mas como é mesmo seu nome? - ele perguntou assim que fiz uma pausa.

Declinei meu nome lentamente, quase escandindo as sílabas, com medo de que ele não entendesse. Depois de uns momentos com a testa enrugada e os olhos revirados para o alto, como quem escarafuncha na memória, olhou-me alvarmente e afirmou:

- Nunca ouvi falar.

Não era aquela a primeira vez que me sentia um zero à esquerda. Engoli uma empada inteira, com azeitona e tudo, empurrei a gororoba para baixo com tremendo gole de refrigerante, mastiguei, pensei, fiquei quieto por algum tempo.

Lá pelas tantas ocorreu-me restabelecer um pouco de meu amor próprio, que àquela altura latia por baixo da mesa. Então perguntei, sem tirar os olhos do rosto do professor:

- Conhece muitos escritores brasileiros?

Ele me olhou surpreso, como se aquilo não fosse pergunta que se fizesse a um guardião. Mas não desgrudei os olhos, e isso significava que estava esperando uma resposta, qualquer que fosse.

- Alguns, respondeu-me depois de alguma relutância.

Parece-me que eu estava muito ofendido, porque insisti:

- Pode me citar cinco nomes?

Ele citou o Machado de Assis, olhou para as pontas dos dedos, cinco, reparou que as unhas estavam crescidas, ah, sim, o Graciliano Ramos, aquele de Vida Secas, não é este mesmo o nome dele?, voltou a encarar o teto com rancor, então levantou-se.

- Eu acho que estão chamando a gente!

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