sexta-feira, 20 de setembro de 2019

CONTOS CORRENTES

O BEIJO DE MÁRMORE*

                     (Mariza Baur)
  
Mesmo num dia como o de hoje, sabia que Hemingway tinha razão. Paris é uma festa. Acordou cedo. Pensando bem, nem dormiu. Os diálogos do passado insistindo em seus ouvidos, a martelar saudade. A manhã seria intensa. Agasalhou-se, tomou um gole de café, nem tocou no croque monsieur, saiu. O ar frio invadia os pulmões, castigava a alma. Mas sobre os telhados de ardósia havia sol e havia azul a confortá-lo, quando atravessou a praça mais bonita de ParisDecidiu pegar o metrô. Desceu na Estação Varenne, caminhou alguns metros, parou diante do número 77, e disse para si mesmo: Eis-me aqui de novo. Nem os dois graus de temperatura desta manhã me fariam desistir de voltar. Pena que as roseiras estejam dormindo.

- Para escrever basta uma primeira frase verdadeira - ele acabara de dizer, plagiando Hemingway.
- Paris é uma festa, acertei? – Letícia indagou.
Sorriram, olhar cúmplice. 
- E para pintar, ou fazer uma escultura, o que se precisa?
            Ela permaneceu quieta, ele continuou:
- Literatura ou pintura, qual a arte mais importante? Dizem que é a pintura. Antes de escrever é necessário pintar. Não se escreve uma história sem que esteja emoldurada na memória. E você, Letícia, o que acha?
A conversa combinava com o lugar.  Já tinham ultrapassado Os Portões do Inferno, nos jardins de Rodin duas mil rosas explodiam em vermelho, o perfume forte a sufocar O Pensador.  Primavera em Paris. E, agora, o sagrado-profano, clichê antigo, brotava do mármore branco, diante dos seus olhos.

Subiu a escadaria do Museu, queria rever O Beijo. Erotismo misturado à ternura nos corpos enlaçados. Tinha certeza, foi ali o princípio de uma história, emoldurada na lembrança. Cinco anos antes, o dia começara sob os plátanos, atrás de um quebra-nozes. Ele queria um quebra-nozes para as nogueiras da estância. Não resistiram às delícias da Fauchoncamembert, foie gras, cerejas e um
Bordeaux, eles subiram os degraus da Madeleine, já ansiando pelo prazer de saborear queijo, vinho, patê e pedindo perdão pelo pecado da gula que cometeriam mais tarde no apê de Saint-Germain-de-Près.

- Seria Camille Claudel nos braços de Rodin? diga, Letícia, o que pensa a respeito?
- Pode ser que sim, pode ser que não - ela respondeu, sem tirar os olhos da escultura. Ficava mais bonita em momentos como este, procurando uma resposta:
- Lembra das Oficinas Literárias? A arte deve transcender à vida. Mas bem que a vida pode imitar a arte.
Ele gostava de provocá-la:
- Então, se não for Camille, quem seria a mulher beijada daquela maneira?
Ela riu da insistência, como se dissesse que importância tinha se a mulher representada era Camille, outra amante, ou uma dançarina de Pigalle, se a escultura era comovente.
- Podia, simplesmente, ser uma ideia de mulher, de um homem e de um beijo, não podia?
- Um beijo universal com todas as contradições da vida - ele rebateu.
- Ou um beijo de tirar o fôlego pela eternidade?
- Um beijo que significa mais que um beijo.
- Duas bocas e um só céu, não foi Drummond que escreveu assim? – ela perguntou baixinho, quase num murmúrio, indagação que era mais uma certeza e embutia um pedido.
Era a deixa para que ele declamasse:
A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.

O Beijo de mármore o intrigou desde o dia em que o viu estampado, num postal. Era adolescente, ainda não tinha beijado ninguém e ficou fascinado.  Será que beijaria uma mulher daquele jeito?  A resposta ele soube naquele dia, em Paris. Haviam combinado na véspera, o roteiro era intenso: quebra-nozes, Fauchon, missa na Madeleine, almoço no bairro dos pintores, passeio pelo erotismo de Pigalle, terminariam o dia no Museu Rodin.
 O Beijo sempre me deixa intrigado - ele confessou - dizem que a obra é inacabada. O que estaria faltando?
- Quer saber mesmo o que falta? Beijo é o que falta - Letícia disse e corou. Coraram. Beijaram-se, ali, diante do Beijo e foram se beijando pelas esquinas de Paris; duas bocas num céu único.

Ele precisou rever O Beijo para sentir o que era falta. Compreendeu o que já sabia. Na cama de Paris, eles foram Rodin e Camille, Sartre e Beauvoir, Hemingway e sua amada, Abelardo e Heloisa. Foram todos os amantes de Paris.

* Vencedor, na categoria conto, do Concurso Literário do Club Paulistano, em 2011.                           



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