O violinista*
A porta do clube era um clarão de festa sobre o escuro da
noite garoenta, quando atravessei a rua muito perpendicular e apressado,
pisando por cima de sua umidade. Mal atingi a calçada, o lado de lá, me dei
conta de uma certa inflexão familiar naquele som que escapava pelas aberturas
do saguão. Não pela melodia, uma ária plangente e bela, executada com bastante
freqüência por muitos violinistas. Não. O que me parecia familiar era a
execução. Eu conhecia apenas um violinista capaz de arrancar tais soluços das
notas mais graves de seu instrumento, que se alternavam com gritos agudos e
lancinantes. Em suas mãos, o instrumento tinha alma.
Só então me lembrei de que há mais de seis meses, desde a
crise da Orquestra Sinfônica, não tinha tido notícias do Antenor Braga, seu jovem
spala. Várias vezes fui visitá-lo no camarim e o encontrava sempre estudando
como se fosse aquela sua primeira apresentação. Em minhas críticas no Diário,
não me cansava de elogiar o talento que o jovem aliava a um estudo muito sério.
Não sei se me culpo a mim ou à vida que levo pelo esquecimento, mas a verdade é
que durante este tempo todo muito poucas vezes pensei no meu amigo.
Mergulhei de rosto úmido na iluminação que jorrava do enorme
lustre central, com suas cristalinas gotas pingentes, e se intensificava nos
grandes espelhos em toda a volta do saguão. Entreguei o convite na porta e
entrei, umas rugas de espanto riscando minha testa. Era uma festa de casamento,
meu Deus, a celebração de um consórcio amoroso, por que aquela música tão
triste, apesar de bela?
Muita gente conversava alegre e distraída no saguão enquanto
outros já subiam as escadarias para o salão principal. Ergui meu corpo na ponta
dos pés, nem assim, de onde estava, foi possível confirmar a identidade do
violinista. Imitação tão perfeita do Antenor era bastante improvável.
Me atirei na corrente dos que pretendiam chegar logo ao
salão, movendo-me na direção da escadaria.
De pé sobre o primeiro degrau, Antenor Braga, ele mesmo,
recebia com música os convidados para a festa. Traje a rigor, o mesmo com que
muitas vezes o vi sobre o palco, em noites de gala. O público sim, o público
não era o mesmo. As pessoas passavam roçando pelo violinista, esbarrando nele
sem lhe prestar qualquer atenção. Antenor mantinha os olhos fechados,
imaginando-se, provavelmente, em uma daquelas noitadas que fizeram sua
reputação. Ele não tocava para aquele público, ele os mantinha fora de seu
espaço. Ele tocava para si mesmo, revivendo um passado extinto.
Parei em sua frente, horrorizado com o que via, indignado com
a crueldade do destino: o maior talento com que cruzei na vida submetido à
indiferença de um público que não era o seu. Cravei-me no granito da escada
numa tentativa desesperada de proteger meu amigo de corpos mais pesados, com
seus ouvidos de arame farpado. Em alguns momentos esqueci com os cotovelos as
lições de boas maneiras.
Os últimos convidados subiam a escadaria, a música chegava
ao fim. Não aplaudi, não disse nada, com medo do constrangimento. Depois de
pendurar os dois braços, Antenor abriu os olhos, como se voltasse de um sonho,
parecendo não saber bem onde estava. Olhou em volta, tentando reconhecer aquele
espaço tão estranho, até me reconhecer ali, a menos de dois passos. Piscou
fundo e firme, e não conseguiu evitar uma ruga, que me pareceu de
aborrecimento. Mas não, era pura vergonha o que ele sentia. Com olhares
rápidos, cheios de ângulos, examinou os arredores, procurando lugar onde se
esconder. Foi o que interpretei de seu visível mal-estar.
Antenor Braga, na minha frente e sobre o primeiro degrau da
escadaria, sentiu-se acuado, provavelmente, sem poder evitar-me. Então fechou
novamente os olhos e seu rosto foi perdendo a cor.
Fiquei com medo de que o Antenor fosse desmaiar e olhei em
volta, procurando alguma idéia de socorro. Com estranha lentidão, ele voltou a
segurar o violino entre o queixo e a clavícula, erguendo o arco preso pela mão
direita até quase a altura da cabeça. E então parou. Seu rosto de alabastro não
tinha mais vida, apesar de sua expressão de sofrimento: os lábios apertados e
imóveis, os olhos escondidos e duas rugas na testa. Sua última reação parece
ter sido o desejo frustrado de encolher-se, de desaparecer. E então parou.
Ao me aproximar, o corpo todo úmido, mas agora de suor,
percebi que ele não podia ouvir seu nome, que eu repetia apavorado. Cheguei a
tocar sua mão com meus dedos, que se mancharam de branco como se ele fosse de
gesso.
Ninguém por perto que testemunhasse minha inocência, eu não
sabia mais o que fazer. Subir para o salão e festejar com os demais, já não conseguiria
mais. Avisar ao dono da festa o que estava acontecendo, foi uma idéia que me
ocorreu, mas me acovardei, com medo de que me julgassem louco.
O mundo perdeu a solidez e eu, o equilíbrio. Os balaústres
da escadaria oscilavam, o clube todo parecia adernar. Pensei que fosse vomitar
e me apoiei no corrimão. Eu ainda não tinha jantado e meu estômago vazio não
respondeu.
Assim que diminuiu a vertigem, virei as costas e fugi para a
garoa escura sem olhar uma única vez para trás.
Já era madrugada quando penso que cheguei a cochilar. Não me
lembro de ter fechado ou não os olhos. Tudo era escuridão e esse detalhe não
faria diferença. Até aquela hora, levantei-me diversas vezes: para enxugar o
suor que me grudava o pijama no corpo, para tomar um analgésico que me
aliviasse a dor de cabeça, para tomar um calmante que me livrasse das
lembranças da véspera. Talvez tenha dormido meia-hora, pouco mais.
Tomei o café que a empregada preparou com muito barulho e
desci para comprar os jornais do dia. Nenhuma nota, alusão nenhuma. Falava-se
do casamento, da elegância de seus convidados e da viagem dos nubentes para o
exterior. Do Antenor Braga, transformado em recepcionista, notícia nenhuma.
Não, não tinha sido uma alucinação, pois se me lembrava de tudo, dos detalhes mais
insignificantes.
Corri ao clube. Passava um pouco das nove quando atravessei
a rua muito perpendicular e apressado e não foi sem certo gosto de pavor na
boca que dei os primeiros passos no saguão. No pé da escadaria, sobre o
primeiro degrau, havia apenas um vaso de cimento muito grande, onde uma
cheflera solitária não percebeu minha confusão.
Uma das faxineiras passava torta com um balde na mão e pulei
na frente dela. Se não tinha visto nada de estranho ali no primeiro degrau. Ela
me olhou curiosa, sem entender muito bem minha pergunta, que repeti com novas
explicações. Por fim a mulher se abriu num sorriso manso, ah, aquela estátua de
gesso. Pois então, o caminhão da prefeitura já tinha levado para o depósito.
*Do livro "O peso da gravata". O conto foi analisado em trabalho acadêmico que postamos na última quarta.
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