sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

CONTOS CORRENTES

O BOBO

(Vasco Pereira de Oliveira)

Ao lado da floresta, infestada de lobos, existia uma aldeia. A convivência, entre lobos e aldeões, era pacífica, embora, vez ou outra, um homem arrastado aqui, um lobo escalpelado ali. Entre mortos e feridos, havia um equilíbrio aceito por ambos os lados.

Na aldeia, o bobo divertia a todos com seu sorriso estopim na cara rosada e gorda. Um bobo que se preze não consegue nem mesmo ser infeliz. Todos o provocavam com perguntas enviesadas, esperando a resposta que sempre vinha encharcada de uma espiritualidade ingênua e engraçada. Todos sabiam de momentos de lucidez, quando o bobo sacava da sua esperteza adormecida nas profundezas da mente. Eram momentos em que ele dava uma resposta inesperada, criativa e espirituosa. Era um bobo incompleto: faltava-lhe inteligência para sua completude.

Andava pela vila enquanto dia. Comia aqui e ali, ajudava um e outro, sempre alegre e divertindo as pessoas. À noite recolhia-se ao seu recanto, onde morava com os pais. “Não ultrapasse a linha da floresta, você pode ser comido pelos lobos.” Ele, cordeiro, obedecia. Assim viviam todos os aldeões, cada um respeitando os limites, tudo em nome da paz. O bobo era um símbolo dessa paz.

Principalmente à noite, poucos se atreviam a deixar a segurança de suas casas. Havia uivos no ar, principalmente em noites de lua brilhante. Um misto de medo e respeito mantinha a distância entre lobos e homens.

Eis que o Diabo, dado a pilhérias e malfeitos, ateou lenha e riscou seu fósforo: apareceu um lobo, membro importante da matilha, morto e escalpelado. Só pode ter sido um humano, gritou um lobo parente da vítima, e o ódio se acendeu, para alegria do tinhoso. Houve passeatas e manifestações contra os humanos, isso não poderia ficar impune. Alguns defendiam um ataque maciço para acabar de vez com a aldeia. Porém venceu o grupo moderado e resolveram nomear três lobos para exigirem justiça junto aos humanos. Queriam que a aldeia identificasse o responsável pelo assassinato e o entregasse à matilha. O infeliz seria morto e escalpelado, então se faria justiça e a paz retornaria.

Quem poderia ter sido o autor do bárbaro crime?, perguntavam-se os aldeões. O escalpelamento e requintes de tortura eram próprios dos humanos, não dos lobos. Sem dúvida, fora um humano quem cometera o crime. Era preciso reparar, punir o responsável, entregá-lo à baba odiosa dos lobos, ou haveria um confronto total. Eram muitos os lobos, e mesmo dispondo de armas de fogo, os aldeões sabiam que um confronto total seria catastrófico, com possibilidade até de extinção da aldeia.

Quem foi?, era a pergunta da vez. Investigar, prender e entregá-lo já era consenso. O tempo escorrendo rápido, os lobos exigindo justiça. Na cantina, na estalagem, na igreja e no bar, o mesmo assunto: era preciso identificar o criminoso com urgência.

O bobo da aldeia não mudou seu comportamento, pois, embora tivessem explicado o que ocorria, ele não era capaz de fazer juízo, pois a natureza não o havia premiado com tal habilidade do espírito. Continuava divertindo as pessoas, se bem que o ânimo geral estava contaminado pela preocupação que pairava no ar: o crime.

Muitos sonhavam com a invasão dos lobos, a noite ferida por olhos de fogo e grandes dentes brancos triturando as crianças da aldeia. Casas incendiadas e as pessoas correndo sem rumo, um pânico desarrumado, fim dos tempos. O pároco realizava missas diárias, tentando tranquilizar as pessoas, porém os lobos, que só entendiam do mundo real e não eram dados a rezas, exigiam justiça. Entreguem o culpado ou destruiremos a aldeia.

Na luta entre Deus e o Diabo, o moleque costuma ser mais criativo. À tragédia maior, acrescentou outra, como quem joga mais lenha na fogueira e dá risadas diante das labaredas atiçadas dançando no ar.

- Quem entregar aos lobos?

- Não sei, alguém que já está preso?

- Não há ninguém preso, o último foi ano passado.

Teriam que resolver logo. Convocaram reuniões, onde várias sugestões surgiam. Foi quando alguém, legítimo representante da sociedade e respeitado cidadão da aldeia, sugeriu, assim como quem não quer nada, mas quer, assim como quem solta uma palavra no ar, sabendo, no íntimo, que o bater de asas de uma borboleta pode provocar uma tempestade: e se entregássemos alguém, assim sem muita utilidade para nossa comunidade, alguém que não fizesse falta para o funcionamento normal da aldeia?

Realizaram uma festa, com propósitos maiores que o divertimento, pois os tempos eram de problemas. O bobo foi o personagem principal, convidado especial que receberia deferências e homenagens, pois sua importância para a aldeia mereceria ser comemorada com muita fartura de
comida e bebida. Ao bobo reservaram lugar de honra na mesa e a nata da sociedade reuniu-se ao redor. Em grandes dentadas, o bobo ia devorando coxas de frango e o vinho escorria pela sua boca, ressaltando a cor das bochechas, que se tornavam rosadas e brilhantes.

- Sabe que você é um dos mais importantes membros dessa comunidade?

- Hum..., respondeu o bobo.

- Temos uma proposta para fazer, é tão vantajosa quanto irrecusável.

- Hum... hum..., respondeu o bobo.

- Você pode salvar nossa aldeia. Faremos uma estátua em tamanho real, que será colocada no centro da aldeia, em sua homenagem e você será lembrado para sempre como nosso maior herói.

- Hum..., respondeu o bobo.

- Sua família receberá ajuda financeira e seus pais nunca precisarão mais trabalhar, a aldeia sustentará a todos eles.

- Hum..., hum..

- Você só terá que assumir o assassinato do lobo e se entregar à matilha.

O bobo, num repente de lucidez, uma coxa de frango parada no ar, ao ouvir “se entregar à matilha”, disse por quê?, não sei de nada.

Era preciso ter paciência, aumentar a recompensa, oferecer mais vinho ao bobo e prometer-lhe mais coisas.

- Você terá dois dias para pedir e fazer o que quiser, tudo por nossa conta. O bobo, tonto e acuado, foi acostumando com a ideia, cozinhado em água morna, cercado de raposas.

- Sim, sim, mas quando me entrego?

- Daqui a dois dias, quando vence o prazo dado pelos lobos.

Assim foi. O herói preparado, roupas novas e assédio das crianças, viva o bobo, nosso homem de coragem, viva o bobo, nosso salvador. Temiam que o bobo, no dia seguinte, desistisse do combinado, então emendaram a festança, mantendo-o sempre longe da sobriedade. Houve até uma procissão, quando rezavam pelas ruas em nome da alma salvadora. O bobo sentindo-se rei, imaginando a própria estátua.

Vestido com sua melhor roupa, sob uma salva de palmas, o bobo caminhou rumo à floresta. Rufaram os tambores, como se um herói partisse para enfrentar sozinho um exército bem armado. Dizem os mais velhos da aldeia que ele foi sorrindo.

A honra da aldeia foi salva, seus nobres habitantes voltaram à rotina e a maioria esqueceu-se do bobo. Hoje os mais novos não dão importância à história, as crianças brincam em volta da estátua do bobo, suja e abandonada, e alguém já propôs demoli-la, pois enfeia aquela parte da aldeia.

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