sexta-feira, 20 de março de 2020

CONTOS CORRENTES

O bar mais distante do Universo

Lourenço Cazarré (*)

Era uma vez um borracho...
Se fosse brasileiro, eu escreveria: Era uma vez um bêbado
Se fosse lusitano, mandaria: Era uma vez um bebedor...
Mas, como eu e meu personagem nascemos naquela pequena e orgulhosa nação de bigodudos de boinas bascas, fiquemos com o borracho.
Certamente o nosso herói tinha outras qualificações. Todas, porém, inferiores. Era reconhecido mesmo por adorar sugar um Juanito Caminero. De doze anos para cima. Cerveja? Bebida de proletários.
Vinho? De padreco.
- Que padre é esse, Rigoroso?
- Dom Carlito de Lavras. Vira um garrafão de 5 litros e arremata com três canecas de licor de butiá
Rigoroso. O nome completo da peça era Antônio João Rigoroso, dos Rigorosos de Caçapava, gente beligerante que se metia em tudo quanto era guerra desde quando Ceballos, um espanhol sanguinário, tentou se adonar de Nossa Senhora do Desterro, em 1776.
Profissão do nosso artista: executivo de empresa de comunicação social. Modesto, ele declinava dos elogios:
- Executivo mesmo é o cara do pelotão de fuzilamento. O resto é perfume de gardênia.
Rigoroso tinha dessas: era meio poeta, mas só nas suas horas vagas, e para fins inconfessáveis, como veremos a seguir.

2
Eis que o nosso pelintra recebe uma ordem: deveria ficar em Miami por uns tempos até empurrar para um grupo de gringos trouxas a desfalecente empresa brasileira na qual ele executava.
Moças, diria um pândego. Era só isso que ele executava bem no seu cotidiano: jovens e espevitadas jornalistas, de calcanhar sujo ou limpo, tanto faz, que ele não dava bola para essa frescura calcânea.
- Mas eu só executo a sangue quente - eximia-se ele nas rodas de piratas do bar do Grande Diabo, Santinho, Ilha da Magia, Santa Catarina, Brasil!
Pronto! Aqui estão as pontas do nosso causo: Miami e Santinho.
Miami é a aquele entreposto comercial onde os tupinambás se abastecem de eletrodomésticos e enxovais de grávidas.
Santinho, naquela época, era uma praia quase sempre deserta onde passeavam, sonhadoras, moças românticas de Porto Alegre e São Paulo. Sempre dispostas a se abrir para alguém antes de voltarem para seus empregos funestos naquelas duas cidades igualmente funestas.
Tônico Rigoroso agüentou sereno o primeiro final de semana em Miami. Dormiu o sábado todo e mais o domingo, na íntegra.
Na verdade, recuperava-se de uma farra que atravessara o final de semana anterior, da noite de sexta à manhã de segunda, na referida praia do Santinho ciceroneando uma excursão de moças mineiras
interessadas em conhecer um açoriano de verdade.
Pausa para explicação. O nosso herói era mesmo açoriano. Descendia dos fundadores de Porto Alegre, que só decidiram se mudar para Caçapava quando descobriram que lá, exatamente lá, ficava o centro geométrico do Universo, seja isso o que for.
Voltemos para o tédio brega de Miami. Na sua segunda sexta-feira, Rigoroso tomou um avião no começo da noite, desceu em São Paulo na manhã de sábado, embarcou num teco-teco (de uma companhia que tinha um nome que hoje poderia gerar controvérsias, Transbrasília) e tocou para Floripa.

3
Ao meio-dia, de banho tomado, entronizou-se na mesa mais vistosa do bar do Grande Diabo. Dali, fumando seu Minister e uiscando, passou a exibir seu perfil de legionário romano à alça de mira de qualquer moça que, por descuido, entrasse no antro.
Mas as moças, como os vaga-lumes, só começam a piscar no langoroso prenúncio do anoitecer. Destarte, Tônico Rigoroso varou serenamente a tarde na companhia de outros flibusteiros, gaúchos e paulistas, com os quais se entendia muito bem. Com os gaúchos pela prática da bazófia. Com os paulistas pelo amor ao dinheiro.
Sim, nosso herói gostava de capim. Mas só pelo seu aspecto utilitário.
Grana no bolso significava um Juanito ao lado e uma moça embaixo.
Nosso bilontra tinha aquela vocação secreta de todo o gaúcho, que é ser locutor de rádio. Da Guaíba, de preferência. Ou seja, falava mais que o homem da cobra!
Mas sobre o que falava o nosso peralta? Sobre a Guerra dos Farrapos.
Ele conhecia de cor as guerras da Cisplatina e do Paraguai, mas gostava mesmo era de falar da Guerra dos Farrapos, nas quais seus ancestrais haviam lutado dos dois lados. Ou seja, como quase todos os outros generais, eles bandeavam-se de uma quadrilha a outra na medida em que falava munição de boca. Ou seja, carne.
Tônico Rigoroso professava teorias históricas horripilantes. Dizia, por exemplo, que aquela guerra, na verdade verdadeira, havia sido travada mesmo entre os ricaços de Pelotas, cultos e sofisticados, contra a populaça de Porto Alegre, comerciantes e industriais alemães e os burocratas do Império, portugueses de tamanco.
Tônico Rigoroso achava que a tal cavalaria dos Lanceiros Negros era uma baita empulhação, mas a repetia sempre quando sentia que a moça que pretendia jantar cultivava ideais igualitários.
- Ca-cavaleiros da Nigéria, Ri-rigoroso? - espantou-se um freqüentador da tasca, um pelotense bleso e fofoqueiro. - Tu-tu ta-tá variando...
- A História é tão licenciosa quanto a Poesia - defendeu-se o nosso aventureiro.

4
Aconteceu que o negócio em Miami não se definiu no mês inicialmente previsto. Arrastou-se por um trimestre, porque os americanos quando vão comprar uma empresa costumam convocar contadores que adoram decifrar balanços. Especialmente se a empresa for do Hemisfério Sul, onde, como se sabe, a Matemática não é a mesma.
Durante esses três infaustos meses, Tônico Rigoroso não faltou a um só final de semana no bar do Grande Diabo.
Era milionário o nosso herói? Não. Acontece que sua empresa trocava espaços publicitários nos seus veículos por passagens aéreas. Permuta ou escambo.
E assim, durante aqueles belos meses, nosso herói derrotou Marco Polo no quesito milhagem.
Entre baldes de Juanito, dissertações sobre a Guerra entre Pelotas e Porto Alegre e caminhadas pelas dunas desertas escorando moçoilas vacilantes, aquele bravo e forte mancebo não viu o tempo passar.
Os gringos, claro, não compraram a empresa, que ruiu como as torres gêmeas, e mais ou menos na mesma época.
Anos depois, um dos freqüentadores daquele boteco, um obscuro e insignificante professor de Jornalismo - em tese amigo de Tônico Rigoroso -, enviou uma solicitação ao Guiness, que foi aceita. Foi assim que Antônio João Rigoroso entrou para o Livro dos Recordes, como o bêbado cujo bar de estimação ficava mais longe de sua casa. Exatos 6.829 quilômetros.

(*) Este conto - inaceitável neste nosso mundinho correto e limpo, porque tem como protagonista um femeeiro pinguço - foi composto com bases em anotações manuscritas (recentemente encontradas) do
já falecido jornalista L. L. M. M., correspondente de O Pasquim na bucólica Florianópolis nos anos 1970.

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