quinta-feira, 19 de março de 2020

CRÍTICA LITERÁRIA

Esta coluna reúne críticas literárias de Wagner Coriolano de Abreu, publicados originalmente no livro SEMPRE AOS PARES, lançado pela Carta Editora.

O CORPO DE CARMÉLIA

(Wagner Coriolano)

Próximo da casa dos oitenta anos, Antonio Carlos Resende escreve o romance da paixão de um homem branco por uma mulher negra, através do qual convida o leitor ao tema da diversidade cultural. “Minha maior preocupação era mesmo a questão do racismo, não tanto a das drogas nem a do amor. A história, aliás, vem me acompanhando desde que eu era guri, em Cachoeira do Sul”, declara o escritor, na edição 90 da Revista Aplauso.

Nomeado com a expressão A obra-prima do teu corpo, o livro escrito e publicado em 2007 amplia as letras gaúchas com a escrita do espaço entre o morro e a cidade, na imaginária Capital. O narrador e protagonista José Bauermann Cardoso, maitre de restaurante e leitor que freqüenta sebos na cidade, encontra-se com a moradora do morro, Carmélia da Silva, que trabalha no candomblé. “Sua avó e sua mãe foram ialorixás. A mãe desencarnou por causa de uma bala perdida numa batida feroz da Brigada, faz dez anos” (p.60). Ela também é iniciada ialorixá, após a viagem ao Cairo.

Desde o dia em que vê Carmélia no boteco do seu Antero, no morro Maria da Conceição, quando ela comprava pão da tarde, até o dia em que a recebe no restaurante, acompanhada do avô, e nos posteriores encontros, José comunica um sentimento de entrega amorosa. Entretanto, do ponto de vista do enfrentamento que estabelece com os líderes do morro – devido à resistência contra o narcotráfico – a personagem perde em coerência, ainda que as cenas imaginosas de seqüestro e ameaças sejam determinantes no texto e no liame dos capítulos.

José tem requintes de poeta. Diante da beleza e elegância da moça negra, magra e de cabelo corte zero, ele aproxima o corpo feminino da noção de obra-prima. No curso do romance, a expressão aparece depois de outras marcas que indicam a sua relação com as palavras: José lê livros na cama (p.15), cita o romance O viúvo, de Oswaldo França Júnior, comprado num sebo (p.22) e alguns contos de Rubem Fonseca (p.43). Ao final de uma cena constrangedora, perante o traficante Jerônimo e seus aliados, declara a Carmélia que “só a obra-prima do teu corpo para atenuar minha vergonha” (p.72). A personagem ainda cita a leitura de Um fuzil na mão um poema no bolso, livro do escritor congolês Emmanuel Dongala, publicado na década de 70, com edição da Nova Fronteira.

As leituras da personagem José diretamente apontam os temas do romancista: a representação da violência, a perspectiva pessoal de futuro e o nome de Carmélia. Tanto o escritor brasileiro Rubem Fonseca como o africano Emmanuel Dongala trabalham a realidade do conflito urbano contemporâneo através da palavra ficcional. Resende esboça o futuro de José colocando-o como postulante ao curso de Direito, bem como independente frente aos interesses da sociedade constituída em torno do restaurante. No nome da negra de cor azulada, o escritor aproxima a magia do poema e a expressão generosa da cultura afrobrasileira.

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