Esta coluna reúne críticas literárias de Wagner Coriolano de Abreu, publicados originalmente no livro SEMPRE AOS PARES, lançado pela Carta Editora.
(Wagner Coriolano)
O TEMPO E A MEMÓRIA
(Wagner Coriolano)
É preciso dar aos contemporâneos a oportunidade de conhecer as obras que marcaram a cultura ocidental como, por exemplo,
a leitura de Em busca do tempo perdido, do escritor francês
Marcel Proust. A caudalosa narrativa reúne sete romances que traçam
o panorama da vida de Marcel, o narrador.
Com exceção do capítulo Um amor de Swann, narrado em terceira pessoa, os livros (um pouco menos de três mil
páginas na tradução brasileira) expõem o ponto de vista do narrador a
respeito de sua própria vida e de como a memória reteve o tempo passado
e o sentimento de transformação de todas as coisas.
A leitura do romance exige tempo e muita observação. A relação entre leitura e memória é inevitável, e a ruptura com o
ato de ler uniforme se torna uma exigência permanente. Daí a pergunta:
como fazer uma leitura do romance e não se perder ou não reagir
com tédio?
A estratégia do texto mostra que a intenção de envolver o
leitor se deu pela intermitência do enredo, quando o escritor
enxerta episódios significativos na grande estrutura narrativa. Segundo o
tradutor
Fernando Py, “o que importa não são os encadeamentos
narrativos e episódicos e sim a análise psicológica, as conexões
estabelecidas e, acima de tudo, aquela transcendental peleja do espírito
criador, que luta para se afirmar e deixar a marca de sua genialidade”.
A linguagem rica em poesia, com que é apresentada a recordação da infância – cheia de detalhes que remetem à época
(como certos costumes e hierarquia rígida), à cultura
arquitetônica (casa com jardim, portão de ferro com ruído ferruginoso) e aos
costumes (jeito de falar em casa) –, revela a trajetória da personagem pelo
mundo nobre. Desse modo, entendemos a aproximação entre o passado
distante da infância e um passado mais próximo do tempo em que
narra, situado no mundo aristocrático da duquesa, no jantar dos
Guermantes.
Marcel recorda as visitas de Swann filho a seus familiares,
a recepção e a mentalidade da família de Swann quanto a seu
casamento com mulher de outra posição social. “Ele já não vivia na
sociedade que sua família freqüentava”, registra o narrador.
Charles de Swann, homem reservado e de vida ambígua, é ingênuo a
respeito da vida movimentada de Odete de Crecy com quem se casa. A
diferença entre a postura do filho mundano e do velho Swann
aristocrático só é possível de estabelecer quando se conhece o desenrolar dos
episódios narrados no romance, onde encontramos a descrição de outras
personagens que foram formadas na educação aristocrática, como a
Senhora de Luxemburgo, mas que mudaram de lugar social.
O crítico alemão Wolfgang Iser afirma que a obra literária
existe quando se constitui como texto na consciência do leitor,
quando leitor e autor participam conjuntamente de um jogo de fantasia,
para o
qual não há espaço para algo mais do que regras de jogo. De
modo excepcional, Proust soube realizar uma jornada pelos
caminhos entre o real e o imaginário, nos comunicando o mundo da sociedade
francesa da passagem entre os séculos XIX e XX, ao mesmo tempo
em que nos conduzindo através da invenção de uma infância
encantada, trazida do tempo perdido.
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