sexta-feira, 1 de maio de 2020

CONTOS CORRENTES

O HOMEM QUE QUIS VER O PÔR DO SOL

(Regina Baptista)

Quando já era possível saber para onde ia a Justiça que ele esperava e em que medida ele se enganara sobre os valores que sempre lhe pareceram tão sagrados e eternos... Quando já não se conseguia confiar nas instituições depois de ter-se amputado em nome delas... Quando já não conseguia entender a complexidade do que, de relance, era a pura simplicidade... Quando enfim ele conheceu a injustiça e se reconheceu como injustiçado e se dera conta de que era muito velho para se rebelar contra os absurdos que se lhe apresentavam, viu-se atormentado pela ideia de que durante a vida toda até ali, todos, sem exceção, tinham rido e debochado pelas suas costas. Foi uma constatação tão amarga que não hesitou em tomar uma decisão: saiu de casa, certa tarde, avisando aos parentes e amigos que ia ver o pôr do sol. Naturalmente todos se surpreenderam com um comunicado tão fora do comum, vindo logo dele, senhor Aldo, um homem que jamais demonstrara atenção para esse tipo de coisa...

Enquanto caminhava sem direção, Aldo deparou-se com um panorama de possibilidades que a princípio lhe pareceu estranho. Não estava acostumado a fazer isso, sair sem direção certa, só aguardando os projetos do destino. Esse panorama tinha, em parte, um gosto de tudo aquilo que ele era até ali: o gosto da servidão involuntária e do compromisso com o que lhe parecera tão digno de compromissos sérios. Por outra parte, havia também o gosto da deserção, esta menos involuntária do que a primeira. Quando contemplava a parte antiga do panorama, sentia vontade de ligar para parentes e amigos e explicar-lhes que o pôr do sol era só um pretexto para ficar só. Quando olhava para o lado novo do panorama, o lado da deserção, sentia-se tolo em pensar em dar satisfações àqueles que certamente já haviam se esquecido do comunicado dele.

E então caminhava olhando vagamente para os lados e imaginando que se falasse às pessoas sobre a vontade de ficar só, aí sim despertaria motivos para que elas lhe cobrassem um retorno às velhas origens. Era portanto melhor parar de pensar em dar satisfações e prosseguir no caminho que já o levava para longe do trânsito e das falas, do movimento e das convenções.

Isso não significava que deixara para trás os problemas. Não. A consciência de Aldo insistia em manter presente todo o quadro de situações que o abordara e o levara a se defrontar com o oposto daquilo para o qual ele sempre fora programado a receber como recompensa por sua fidelidade. Foi concentrando-se nesse quadro e nas frustrações surpreendentes, que Aldo finalmente se instalou num campo deserto e de mato crescido, uma propriedade abandonada.

Já havia se esquecido da desculpa sobre o pôr do sol, mas quando se viu sozinho, em silêncio e banhado pelos últimos raios de sol do dia, decidiu apreciar pela primeira vez na vida um pôr do sol. Sentou-se numa rocha, a única daquele terreno e que, por incrível coincidência, tinha uma formação moldada à anatomia dos seus quadris, de modo que quando sentou-se, sentiu sentando-se num banco construído para recebê-lo. O encosto, ou o que servia de encosto, mantinha o usuário exatamente de frente para o pôr do sol; coisa espantosa!

Sentado confortavelmente sobre a pequena rocha, Aldo ergueu levemente a cabeça e passou a observar o horizonte. À medida que o sol se insinuava, Aldo o encarava com certa angústia. “Você também é cúmplice deles?”, perguntava ao sol que em silêncio afirmava que sim. Sim, o sol também estivera envolvido na trama, pois marcara as horas daquela vida que transcorria em meio a toda propensão à ordem.

– Mas você eu perdoo. – disse Aldo – Você não teve culpa. E além disso, você agora está aí me fazendo companhia quando eu preciso tanto de uma! Uma companhia que não diga nada, apenas exista...

O sol se pôs no primeiro crepúsculo, vieram as estrelas. Aldo apreciou-as também antes de adormecer sentado na rocha-cadeira. Quando a posição ficou desconfortável, o homem deitou-se no chão, próximo da rocha, ao relento. Passaram alguns dias desde que Aldo decidira caminhar sem rumo definido. Os parentes e amigos, preocupados, trataram de procurá-lo e o encontraram no terreno abandonado, imóvel sobre a cadeira de pedra. Fizeram de tudo para convencê-lo a voltar para casa e sair do relento. Mas Aldo preferia continuar ali. As pessoas falavam sobre a sobrevivência, a alimentação, o banho, o abrigo... E ele respondia a tudo com convicção:

_ Se vier a fome, eu procuro comida; se vier o frio, eu procuro abrigo... Se precisar, eu saio daqui, mas enquanto eu aguentar, vou ficar assistindo o sol se pôr quantas vezes me der vontade.

A pequena cidade toda se mobilizou para tentar convencer Aldo a voltar para casa. Algumas pessoas organizavam grupos de visitantes; chegavam em pequenos grupos no início, depois em grupos maiores. Rodeavam o velho. Faziam palestras sobre as fugas históricas e os altos preços pagos por aqueles que se puseram nessa empreitada e sem um respaldo firme. Falavam de pessoas que necessitaram de deserção por alguma causa ou missão quase sagrada e que não fazia sentido se isolar assim, sem ter um propósito bem claro e avaliado. “Isto”, dissera certa vez um dos visitantes “é uma espécie de deboche contra os verdadeiros eremitas”. Mas Aldo não se curvava a argumento nenhum.

Cansados de tentar, os cidadãos da comunidade divulgavam o drama de Aldo para as cidades vizinhas e até para todo o país. E de todos os lugares apareciam caravanas cheias de disposição para resgatar o velho daquele mundo e retorná-lo à vida anterior. Quando as pessoas perceberam que nenhuma tentativa vingava, pouco a pouco, foram se conformando com o sacrifício voluntário de Aldo. Naturalmente nem por isso o esqueceram: ele passou a ser observado de longe; algumas pessoas organizavam a assistência básica para ele. Em revezamento, faziam entrega de comida todos os dias, levavam cobertores e roupas para o campo; em dias de temporal, providenciavam uma barraca de camping para protegê-lo da chuva; em tempos de epidemia, orientavam os voluntários a levar as vacinas até ele. Foi improvisado até um banheiro móvel onde Aldo podia tomar banho e fazer as necessidades, sem ter que se deslocar do campo.

Enfim, a decisão de Aldo fora institucionalizada. Sua pessoa ganhou atenção do departamento de turismo do governo local. Pois a cidade passou a receber turistas de todo o mundo, querendo conhecer “o homem que quis ver o pôr do sol”. A cidade começou a ganhar dinheiro por causa do turismo e os justiceiros da população trataram de fazer suas reivindicações: uma parte da receita gerada pelo turismo da cidade deveria, por justiça, ser dedicada àqueles a quem Aldo tinha em alta conta, já que ele era o responsável pelo aumento da receita. Mas quando alguém perguntava ao velho desertor qual era a parcela da população que deveria ser beneficiada com seu empenho, ele respondia, com o olhar perdido no universo:

– Os recém-nascidos, aqueles que ainda não viram um pôr do sol, aqueles que sequer abriram direito os olhinhos e estão portanto alheios à conspiração.

Diante de respostas tão lunáticas, as pessoas se convenciam de que Aldo não estava mais dominando suas faculdades mentais. Aos poucos a vigilância da população foi baixando a guarda e os ganhos da administração com o turismo propiciado por Aldo foram sendo injetados na velha política que se preservava havia décadas.

Num belo dia chegou à cidade uma companhia circense. Era o famoso Circo Arqueópterix. Suas histórias e viagens pelo mundo deixaram-no famoso como um dos circos mais fantásticos do planeta. Apesar de manter uma aparência mambembe, o circo chamava a atenção pelo marketing que havia a seu respeito. Todos estavam ansiosos e queriam conhecer o grande Arqueópterix. Por isso os primeiros ingressos começaram a ser vendidos antes mesmo que a direção da companhia encontrasse um lugar adequado para instalar as lonas. Depois de muito estudo junto ao departamento de turismo e junto à população, descobriu-se que o único lugar adequado para a instalação do circo era justamente o terreno abandonado onde vivia, durante anos, o velho Aldo.

– Não há outro jeito. – disse o diretor do departamento de turismo. – O terreno do homem que quis ver o pôr do sol é o único lugar que podemos colocar à disposição do circo.

Mas os artistas do Arqueópterix já conheciam a história do velho e não aceitavam a ideia de expulsá-lo do local por causa do espetáculo. E pensaram e discutiram entre si a busca de uma solução. Queriam e precisavam realizar o espetáculo mas sem incomodar o nativo ilustre. Até que uma das assistentes do mágico teve uma ideia:

_ E se a gente instalasse o circo no terreno de modo que a arquibancada fosse colocada de acordo com a localização da rocha-cadeira? Ou seja, poderíamos armar a arquibancada respeitando a posição da rocha-cadeira de modo que ela ficasse encaixada entre a armação. Assim, o próprio senhor Aldo seria um dos espectadores do espetáculo. Ele ficaria voltado para o picadeiro, poderia nos assistir junto com toda a plateia.

Todos concordaram que entre muitas propostas, aquela era a melhor solução. E assim fizeram. Quando faltava pouco tempo para a primeira apresentação, os circenses propuseram para Aldo o projeto de armação do circo conforme fora sugerido pela assistente do mágico. Aldo ouviu as
explicações. Bastava-lhe saber que um grupo de artistas estava preocupado em não tirar-lhe o sossego mesmo quando precisasse da sua colaboração. Assim se fez. O circo foi montado aos olhos de Aldo que, sentado na sua rocha-cadeira, observava o movimento dos jovens músculos, o empenho dos ensaios, a exaustão dos que queriam ser perfeitos.

Enquanto Aldo desconfiava da perfeição ambicionada pelos circenses, o departamento de turismo local já havia encomendado um informe publicitário contando que Aldo estava assistindo aos ensaios da grande companhia de circo, ou que este estava, generosamente, ensaiando aos olhos do homem que quis ver o pôr do sol. Este apelo à emoção teve um grande efeito sobre aqueles que ainda não tinham comprado ingresso para o circo. Faltando poucos dias para a estreia, todos os ingressos da temporada já estavam vendidos.

Na estreia do Arqueópterix a imprensa local e também a nacional viram ali um bom e atrativo acontecimento, sobretudo por causa do espectador ilustre. Se não fosse por ele, a notícia não teria um apelo tão poderoso.

E assim Aldo adquiria mais e mais notoriedade sem que precisasse demonstrar as fontes das suas convicções.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças