sexta-feira, 22 de maio de 2020

CONTOS CORRENTES

O BUMBO*

(Eltânia André)

Aaaaar-ranca pentelho,
Bate cu, bate culhão
Aaaaar-ranca pentelho,
Bate cu, bate culhão
Aaaaar-ranca pentelho,
Bate cu, bate culhão

Caralim, caralim
Bunnnn-da.
Caralim, caralim
Bunnnn-da.

Estávamos nos incorporando à parada cívico-militar, naquele sete de setembro que amanheceu com o tempo fechado. Vínhamos das escolas mais distantes para formamos os pelotões. Todos cantavam numa batida onomatopeica, criatividade e corpos em plena sintonia. Integrantes imaginários de uma banda desafinada sob a batuta do mestre Bobeira. Tarol, prato, lira, surdo, caixa, atabaque, instrumentos de percussão, bateria, corneta; Luizinho, Murillo, Ronaldo, Danilo, Nelsinho, Biel, Dié. E eu no bumbo – buuuuuuuuuun-da. Buuuuuuuuuun-da: o instrumento arrancando risos, motivando-me a gritar cada vez mais alto – buuuuuuuuuun-da. Buuuuuuuuuun-da. De tão concentrado na brincadeira, não percebi que o pai se aproximava com o velho cinto de couro. Foi aí que conheci o peso das mãos rudes do homem pesando-me no lombo, você quer me envergonhar? Quem te ensinou esses palavrões? Em casa é que não foi. Há dias você vem me provocando. Menino insolente.

O líquido quente e turvo escorreu pelas pernas. Senti vergonha, mais que dor, meus colegas da bandinha, toda a plateia assistindo àquilo (não encontro outra palavra para definir – recorro ao pronome demonstrativo). O circo estava armado, e o menino teria que se defender à sua maneira. Encolhido: eu liliputiano, dentro de uma esfera gigante, a minha própria existência.

Breque.

A bateria emudecida ao gesto ordenado de Bobeira. Silêncio de necrópole: instrumentos, corações, vozes, as respirações em compacta mudez. Com a visão turva  e sem entender as razões de meu pai, sentia o cinto marcando a minha pele, causando a primeira nódoa na alma do menino. Uma sensação reproduzida em câmera lenta, como se aquele ato tivesse o poder brutal de ressoar seu impacto ad aeternum.

Arrepios percorreram o meu corpo, os pelos eriçados pela lembrança trazem à tona todo o afeto daquele instante com a eficácia devastadora de um câncer. Metástase na alma.

Por que me vem com tanta volúpia o que deveria ser recalcado, meu caro Carlos? Pensei que não me lembrava desse episódio na vida de minhas retinas tão distantes e antigas, mas vem desenfreada com toda a carga de emoção. Eficiente é a memória do rancor.

Foi só uma brincadeira, queria dizer, talvez tenha dito, não sei se tive chance. Na tentativa de ser protegido, fui para casa, mamãe estava no portão e, quando me viu desesperado com os braços abertos em sua direção, entrou. Aprendi muito cedo que vida é solidão. Rendi-me: sentei na calçada cabisbaixo, calção molhado de mijo, e o rosto encharcado de susto. O pai, com as mãos trêmulas, recolocou o cinto na calça e levou-me para casa aos empurrões e safanões – o seu modo de impor a autoridade.

Mas durante o jantar o pai me dirigiu um olhar manso, olhos de ternura. Parecia arrependido. Entendi o gesto como um sutil pedido de perdão, apesar de nada ter dito. Retribuí com um sorriso preso, tímido, quase um esgar. Satisfeito com aquela pequena porção de carinho, tentei uma aproximação, quer mais um pouco de suco pai, quer? Apesar de confuso, eu capturei a essência daquele efêmero olhar, algo feérico emergiu do solo árido da nossa relação. Forças opostas vindas do mesmo homem, esse velho pai com o coração do lado direito e chapéu à Fernando Pessoa.

Quando a luz refletia sobre os olhos do pai, raios acinzentados espalhavam-se do contorno da íris até a pupila, e de acordo com o humor ou do entorno, eles mudavam de cor. Naquele instante, no momento em que aquele olhar pousou em mim, o chumbo se transformou em suave mar. Eternizei esse pai de olhar mimético (como um objeto que se guarda numa caixa reservada para as melhores recordações) para tentar conter meus ressentimentos. Mas a esperança durou apenas alguns segundos, o pai desviou o olhar e começou a pregar a ladainha sobre a sua decepção com os filhos e, sem mais nem menos, deu um safanão no Miguel para garantir sua total credibilidade de pai. Saímos os dois da mesa e, amuados, fomos para o quarto.

Tarde da noite, inconsolável, num choro torrencial e solitário, enfiei-me debaixo do tanque de lavar roupas com suas pernas quebradas e remendadas com arame, sentia-me sufocado e não conseguia dormir. Fui encolhendo, encolhendo e me envergando até que o meu corpo de menino coubesse naquele minúsculo espaço de cimento. Ouvia o ronco do pai como vindo de um lugar distante. Não dormi à noite, remoendo a minha mágoa. As primeiras reflexões existenciais iam brotando: eu estava
aprisionado no meu próprio corpo, naquela geografia, naquele subsolo, não havia liberdade; tudo sempre será compulsório. Como rejeitar o destino primitivo? Viver. A inocência ia morrendo, o menino se apagando.

Em súbita eclosão, o nó na garganta precipitando em minha memória uma avalanche de outras recordações, arremessando-me numa vereda íntima e estreita, tornando ruidoso o que por tanto tempo disfarçou-se de silêncio.

Eltânia André nasceu em Cataguases-MG. Autora dos livros: Manhãs adiadas, contos, Dobra Editorial, SP, 2012; Para fugir dos vivos, romance, editora Patuá, SP, 2015; Diolindas, romance, editora Penalux, SP, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano; Duelos, contos, editora Patuá, SP, 2018.

*Excerto do romance “Para fugir dos Vivos”, publicado pela editora Patuá em 2015.

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