sexta-feira, 29 de maio de 2020

CONTOS CORRENTES

ANTES QUE ANOITEÇA

(Suzana Montoro)

Talvez fosse mais rápido descer pelo elevador, mas era impossível esperar enquanto o tempo poderia estar se derramando em lentas gotas que acabariam por secar a fonte. Vinte e três andares até o térreo. Aflito, preferi descer pelas escadas, saltando os degraus e me atropelando na ânsia. Além do receio, o sentimento de urgência parecia me sufocar. Ao menos descendo pelas escadas eu tinha a sensação de estar vencendo a corrida contra o relógio. Quantos andares ainda? Só queria chegar o mais rápido possível. Como foi que não me dei conta de que tudo voltaria? Talvez tenha deixado passar despercebido um detalhe importante. Logo agora em que tudo parecia tão bem, a minha vida e a dela deslizando suavemente, um trem sobre reluzentes trilhos, nenhum ranger aparente, nenhuma encruzilhada, apenas paisagem se abrindo de um e de outro lado e de repente, sem qualquer prenúncio, essa voragem. Como supor que o céu se carregaria de nuvens para novamente armar-se em tempestade. Ela já havia deixado mensagens deste tipo antes. Mas em nenhuma escutei o tom peremptório e a alusão precisa de finitude. Como um livro que fechamos depois de lido, ela disse, como um livro que se acaba. De uma vez por todas, finalizou enfática, sublinhando uma intenção não mais adormecida. Foi o tom e a metáfora usada que me arrebataram, além da falta de resposta assim que ouvi a mensagem e liguei de volta. Provavelmente o telefone estava desligado. Fui às pressas ao apartamento dela imaginando seus olhos negros olhando para dentro, inacessíveis. A campainha não soava, a chave geral poderia estar desligada, bati diversas vezes na porta, nenhum ruído, só o meu coração acelerado e de repente aquela saraivada de fogos em algum lugar da cidade, como era possível alguém estar comemorando o que fosse enquanto eu sufocava de angústia. Saí desabalado escada abaixo, a corrida contra o tempo intensificada pelos ruídos dos fogos, uma algazarra de rojões que mais pareciam batidas ensurdecedoras de um relógio martelando minha cabeça. Por que fechar o livro de uma vez por todas? Fui pulando os degraus de qualquer maneira e minhas pernas doíam, os sapatos apertados mastigavam meus pés, certamente as feridas nos calcanhares se abririam, as mesmas de quando atravessei a praia inteira na noite chuvosa para encontrá-la encarapitada no alto das pedras, o olhar ancorado nas próprias funduras onde eu nunca consegui alcançá-la. Enquanto descia as escadas, os intermináveis vinte e três andares, foi como se naufragasse junto a ela no oco daquele olhar que insistia em viver no escuro, eu e a minha necessidade intensa de luz. Não sei quantas vezes caí e tornei a levantar, embolando nos degraus, batendo o corpo contra o corrimão até chegar ao térreo. A porta que dava para o hall do prédio estava fechada. Antes de abri-la apertei firmemente a maçaneta como se tentasse segurar nas mãos o impulso que vinha me sacudindo desde os primeiros degraus. Talvez fosse muito tarde para chacoalhá-la pelos ombros, arrancá-la do estupor e chamá-la à razão, uma razão que eu supunha nossa, mas descobri de súbito que também eu tinha um delírio, enredado na vida instável que compartíamos, nós dois estancados num pedaço de chão lodoso e barrento, e eu, cada vez que tentava erguê-la e deixá-la firme no esteio do nosso relacionamento, era eu que ia me desequilibrando mais e mais e deve ter sido aí que fui tomado pela vertigem, a ânsia que me revolvia durante a descida pelas escadas por fim abraçou-me como uma escuridão e senti a dor lancinante nos pés, de novo a ferida se abrindo, sempre aquela fenda que por qualquer esforço supurava, enquanto ela tentava livrar-se de um fardo desde o vigésimo terceiro andar, como um livro que fechamos, ela tinha dito, e eu imaginando um livro fechado, inerte, junto a tantos outros, uns sobre os outros como tijolos formando sólidas paredes, e ao encontrar uma fresta, uma nesga de luz que escapava, abri a porta que me separava do mundo e saí apressado para a rua como se fugisse da tempestade premente. Sem olhar para cima entrei no táxi e me afundei no banco de trás indicando ao motorista, com um aceno brusco de cabeça, a direção a seguir, em frente, sempre em frente, para outra paisagem, antes que anoiteça.

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