quinta-feira, 28 de maio de 2020

CRÍTICA LITERÁRIA

Esta coluna reúne críticas literárias de Wagner Coriolano de Abreu, publicados originalmente no livro SEMPRE AOS PARES, lançado pela Carta Editora.

SEMPRE AOS PARES
(Wagner Coriolano)

Dizer poesia não é o mesmo que dizer poema. Contudo, os poetas anunciam seus versos como poesia, antecipando a solenidade que o leitor há de encontrar e, ao mesmo tempo, dando força a um costume imemorial, de ter a poesia na melhor conta, digamos que ofício de poucos.

João Claudio Arendt segue a tradição dos poetas soleníssimos, dando-nos um livro inteiro de poemas, última produção de uma lavoura que cultiva faz mais de vinte anos. Ainda nos umbrais da Universidade, e depois nos entretempos da jornada de Letras e da vida, João Claudio limava os versos e às vezes os submetia aos pares, exercícios poéticos que entendemos como antecedentes deste Plural da ausência, recentemente publicado em Caxias do Sul (2009).

Às vésperas de fazer quarenta anos, o poeta vem nos colocar frente à leitura de duas vertentes da literatura: o romantismo e o modernismo da fase contemporânea. Como leitor experiente, João Claudio nos submete aos versos de Junqueira Freire e Castro Alves, por um lado, e de Ferreira Gullar, por outro, preparando o terreno da poética que lida com temas recorrentes da condição humana: o vazio como niilismo, a morte como inexorável, o desejo como o encontro dos corpos.

Caímos na expressão sempre aos pares por uma série de indícios: o poeta utiliza dois substantivos no título Plural da ausência; divide a obra em duas partes, sendo que cada uma tem subtítulo com expressão hifenizada (Desejo-erosão; Tempo-corrosão); estabelece um diálogo com o sistema literário, retomando dois períodos e fincando marcas de outros fazeres poéticos. Enfim, ele cultiva pares, paralelismos e oposições.

Será que os poemas do passado, os perdidos nos desvãos do tempo, podem ameaçar esses novos versos na praça?

Temos ainda que aprender dos poetas. Nos livros de poesia, encontramos uma lição silenciosa de diálogo e uma convocação ao trabalho de decifrar a Esfinge. Os dicionários nos lembram a figura
assombrosa desta senhora: monstro fabuloso com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de harpia, que propunha enigmas aos viandantes e devorava quem não conseguia decifrá-los. Como admiro os dicionaristas, que conseguem nos dizer com poucas palavras sobre um mundo imaginário da Grécia. Como admiramos teus versos, João Claudio, que trazem novamente os mitos antigos: “Fui até o lago e ele estava deserto/ No espelho das águas cintilava apenas o teu rosto de esfinge/ Devorei tua imagem para decifrar o enigma”.

Os poetas dialogam na distância dos tempos. Os versos que escrevem e as imagens que inventam, depois de um tempo, reaparecem na obra dos novos, refundindo sentidos. Querem uma prova? Uma imagem do João, a cinza das manhãs, remete a Manuel Bandeira, que estreou com A cinza das horas, e também escreveu os poemas de Estrela da manhã. Um poeta se procura em outro poeta, o João Claudio se procura na tradição: “Sentes a solidão que a cinza das manhãs deságua sobre ti?/ Sentes o abandono que o basalto das tardes estende sobre ti?/ Sentes o desamparo que o chumbo das noites arroja sobre ti?/ É minha ausência que deságua, que se estende que se aloja em ti”. Com isso, apontamos um rastro, mas devemos esperar por mais crítica que possa desvendar este Plural da ausência.

A leitura de poesia pode auxiliar em outros trabalhos com a palavra, como é o caso, por exemplo, de quem faz reportagem, ensaio de cultura e composição de letra musical. Quanto à proximidade en-
tre poesia e música, se torna pertinente recordarmos as palavras de Pedro Lyra, tecendo comentário sobre a relação entre o poema e a letra de música. Lyra registra que “o poema é uma forma de expressão que se sustenta por si mesma, por ter seu próprio ritmo; a letra de música só se sustenta pela melodia e, portanto, tem um ritmo externo” (O real no poético).

A poesia de Plural da ausência prepara a palavra pelo desafio que lança ao leitor. Ensina-nos que no ato de leitura é preciso perceber e apreciar cada detalhe, como nas minuciosas explorações de ritmos pelo emprego de paralelismo. O poeta ora cria uma imagem cíclica – “Apago do meu corpo os vestígios do teu/ Resistem na pele os fluidos impressos inscritos nos pêlos/ Apago do meu corpo os vestígios do teu/Tatuados na pele os humores secretos conservam apelos/ Apago do meu corpo os vestígios do teu”, ora inventa uma surpresa – “Este amor qual quebra-cabeças com peças repetidas e faltantes/ este amor que capitula mas ao exílio condena os seus amantes/ este amor que se nutre de migalhas que erra os caminhos e a cada entrega é ausência constante/ este amor é obra de um cupido cego e sem asas, artimanha do diabo ou ilusão de um poeta que nunca nunca amou antes”.

Outro aspecto significativo da obra tem a ver com a criação dos subtítulos desejo-erosão e tempo-corrosão. Bem no começo, o poeta lança o curto poema “O amor/ é a erosão da ausência” – que ilustra a relação desejo-erosão – como carro-chefe de longa série de poemas, onde predomina a relação intersubjetiva dos amantes, embora raros poemas escapem ao registro do pronome pessoal. Na segunda parte do livro, ele nos propõe o conflito da corrosão do tempo, por meio da metáfora do humano como pássaro. Recorrentes são as imagens em que pássaros ilustram situações humanas, o desgaste que vem com o tempo: “Por que não colhes o fruto antes dos pássaros e da corrosão do açúcar?”. Aqui, também, alguns poemas fogem da regra, registrando a corrosão do tempo com outras imagens: “De onde tira o mar timbre pra cantar?/ De onde tira o mar ginga pra dançar?/ De onde
tira o mar o sal pra adoçar?”

Com este Plural da ausência, João Claudio Arendt nos enriquece pela poesia e pela redescoberta do espanto como concernente ao humano.

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