sexta-feira, 26 de junho de 2020

CONTOS CORRENTES

Esta coluna reúne contos de diversos autores.

PREDESTINAÇÃO

(Edmar Monteiro Filho)

Quirino foi arrancado da cela muito cedo, o suficiente para que ainda sentisse os efeitos da bebida intoxicando sua atenção, seus gestos. Do praça Toledo, que era seu amigo, procurou saber do que se tratava, mas o outro não soube dizer. Serviram-lhe pão duro, um queijo ranço e café. Matou como pôde a sede atroz com a água salobra que havia na cela. Então, foi levado ao pátio com as mãos atadas e colocado no lombo de uma mula. Com o cabo Rodrigues e dois praças montados, mais um par de animais de carga – que já se achavam preparados –, formaram uma comitiva e partiram ainda antes que o sol nascesse, ele desconhecendo seu destino, desconfiando que os propósitos da jornada incluíam ministrar-lhe um severo castigo.

Por dois dias seguiram em direção ao norte, atravessando a serra e acompanhados por uma brisa que amenizava o calor durante o dia e esfriava o sono, à noite. Seus companheiros de jornada foram cordiais e até generosos, com exceção do cabo, que mal lhe dirigiu a palavra. Atavam-lhe os pés e as mãos para dormir, mas, a despeito desse desconforto, não o trataram mal. Na manhã do terceiro dia, iniciaram uma leve descida por uma estrada um tanto íngreme, onde cruzaram com uma tropa de mulas, gente a pé, carros de boi. Adiante, deixaram a estrada e enveredaram por um caminho mais estreito, mas com espaço suficiente para deixar passar uma carroça ou carruagem, o piso cuidado, livre do mato. Não mais de cem metros à frente e já se vislumbrava o casarão de dois andares, pintado de azul, atrás de um vasto terreiro onde o café era rastelado por dezenas de braços. Contornaram a casa e apearam nos fundos, onde dois escravos recolheram as montarias. Esperaram. Um oficial apareceu ajeitando sua farda da Guarda Nacional. Trocou continências com o cabo e entraram na casa, retornando poucos minutos depois. O preso e sua escolta foram admitidos numa grande cozinha, que cheirava a temperos fortes. Tomaram café com leite e comeram pães de milho. Depois, o cabo chamou pelos dois soldados e o prisioneiro, ainda com as mãos atadas, ficou sozinho com uma cozinheira que atiçava o fogo sem notar sua presença. Em dado momento, pareceu a ele que uma discussão se travava do lado de fora entre o cabo e o oficial, mas não foi possível ouvir o que diziam. Pouco depois, dois soldados vieram buscá-lo, conduzindo-o por um caminho ladeado de ipês novos, passando por uma olaria e uma serraria, até um grupo de casas de pau-a-pique, alinhadas numa elevação que dominava um pequeno lago. Ali, diante da casa mais afastada, entaram-se os três à sombra de uma mangueira.

Se o preso preparou o pior enredo da animosidade entre os seus e os da Guarda Nacional, num instante viu desfeitos seus receios. "Somos todos da farda", afirmou o homem magro, o rosto assinado pela varíola, sentado à sua direita, acrescentando que a diferença residia no fato de a usarem somente quando convocados. O preso pediu ao outro soldado, bastante jovem, que lhe desatasse as mãos. Mas o outro respondeu ser impossível, que lhe seriam atadas as suas, caso
desobedecesse a ordem direta. Lamentou a sorte do prisioneiro e quis saber o que fizera e qual a natureza da sua punição. Quirino estudou a reposta. Disse que não se dava com abusos e ordens descabidas. Fora feito para a luta e abominava estar à disposição de gente mesquinha, como o cabo Rodrigues e o comandante de sua tropa, o capitão Oliveira, para servir de estafeta. O outro perguntou se disso resultara um tipo de desobediência ou desacato aos superiores e Quirino respondeu que fora coisa pior, mas não se arrependia, pois mostrara que tipo de homem era. Disse que com as pranchadas e os açoites não haviam logrado dobrar seu caráter e agora o enviavam para um destino desconhecido. Quis então saber onde estava. O menino-soldado respondeu que estavam nas terras do Barão de Caldas e o preso perguntou-lhe por que estavam eles arranchados na fazenda. Disse o outro que faziam a guarda ao jovem barão, que ostentava o posto de tenente da Guarda e se achava confinado em sua propriedade por haver matado um homem. Quirino afirmou que a ele não lhe parecia uma punição pesada para um crime dessa ordem. O soldado mais velho afirmou que tanto o barão quanto o morto eram pessoas de grande importância na corte e que, ao que constava, o crime fora cometido de forma vil. Falava-se em pena de morte para o barão. Quirino argumentou que exceto em tempos de guerra já ninguém era condenado a morte no Brasil e aqueles que o eram tinham suas penas comutadas pelo imperador. A ele parecia que se tratava de encenação e que um homem confinado em suas próprias terras poderia evadir-se tão logo sentisse algum tipo de ameaça à vida. O guarda mais jovem disse que o barão era um homem admirável. O mais velho ponderou que ele devia ter suas garantias e Quirino atalhou que aquilo não lhe dizia respeito e não sabia por qual motivo havia sido trazido até ali. Tampouco os soldados souberam dizer a razão, pois só cuidavam de vigiar a casa e comiam bem, apreciando bastante o serviço.

Pouco depois, subiram dois soldados para render a guarda. Traziam o rancho para o prisioneiro. Quirino renovou o pedido para que lhe desatassem as mãos, ao menos enquanto comia, mas o pedido foi negado mais uma vez. Os substitutos eram menos amigáveis, de pouca conversa. Mesmo assim, o preso buscou saber deles se conheciam o motivo pelo qual ele fora trazido até ali, sem sucesso. Passaram o dia todo dormitando sob a árvore. Ao anoitecer, retornou a primeira dupla de soldados para fazer a guarda. O mais jovem trouxe um pequeno frasco com aguardente para o preso, que agradeceu vivamente, entornando o líquido com sofreguidão. O outro soldado andara assuntando sobre o que aguardava o preso e o que pôde apurar era que estava ali para prestar serviços ao barão, não conseguindo saber que tipo de serviços seriam esses. Quirino afirmou ter muitos problemas com os oficiais. Desconfiava que seria um castigo pesado. O preso dormiu com as mãos e pernas atadas mais uma vez e os soldados revezaram-se na sua guarda durante toda a noite. Na manhã seguinte, vieram os soldados calados, trazendo café, pão de milho e toucinho. Depois da refeição, conduziram Quirino até um riacho para que tomasse banho, tendo-lhe fornecido uma barra de sabão. Em seguida, deram-lhe para vestir uma túnica azul da Guarda e umas calças brancas, quase novas, com uma barretina surrada, que lhe assentou bem à cabeça. Os borzeguins conservou os seus, mas arranjaram-lhe cascas de banana para lustrá-los. Deram-lhe uma navalha para que se barbeasse e um pente. Tudo isso, ficou sabendo depois, era para que estivesse apresentável diante do barão. Durante todo o tempo esteve sob a vigia das armas e foi advertido de que seria fuzilado caso procurasse fugir. Quirino não duvidou disso. Limpo e fardado, os pulsos feridos enfim livres, deixou-se conduzir até o casarão, declarando que, fosse qual fosse a tarefa a cumprir, não lhe parecia pior que uma cela DE quartel.

Entraram outra vez pelos fundos, atravessaram a cozinha escura e fresca, um longo e estreito corredor e logo estavam numa sala enorme, que era uma profusão de luz pelas janelas escancaradas por toda a extensão das duas paredes voltadas para o poente. Ali, permaneceram por uns longos minutos, enquanto quatro homens, sentados do lado oposto do aposento e de costas para onde se encontravam o preso e sua escolta, conversavam em voz baixa. Como fossem ignorados, o soldado mais velho atravessou a sala até se posicionar ao lado de uma das poltronas, perfilando-se e anunciando em voz alta que estavam apresentando o prisioneiro. Um gesto ordenou que avançassem, os passos no assoalho ribombando como uma distante salva de canhões. Postados junto ao cabo, aguardaram em silêncio. No círculo formado pelas poltronas de veludo grená encontravam-se um jovem oficial da Guarda, em um belo uniforme, um coronel do exército e dois civis, trajados elegantemente. O coronel apresentou Quirino aos demais como "o homem". O jovem oficial, um tenente, perguntou a Quirino com voz afetada que acusações pesavam sobre ele. O preso respondeu que estava preso por bebedeira e por haver participado de uma briga numa taberna. O cabo pediu licença para informar que Quirino era reincidente em episódios de bebedeira, insubordinação, desacato a oficiais superiores e desobediência. O tenente perguntou por que não o haviam expulsado da corporação e o coronel esclareceu que não cabia tal punição para os conscritos no exército, devendo ser reeducados a bem servir suas fardas, seus regimentos e o país. Acrescentou que vestia a farda da Guarda por estar seu uniforme do exército em frangalhos. Quirino pediu licença para falar, o que lhe foi negado. O tenente levantou-se, caminhou ao redor do preso, examinando-o detidamente, sem dizer palavra. Depois, pediu-lhe que caminhasse até o outro extremo da sala e retornasse. Voltou a sentar-se e o coronel
perguntou-lhe se estava satisfeito. O tenente deu de ombros. Em seguida questionou os dois civis e estes afirmaram em uníssono que estavam satisfeitos. Então, ordenou que o preso fosse levado de volta e alimentado.

Tão logo houve nova troca de guarda, Quirino procurou saber se os soldados haviam obtido alguma informação acerca do significado da entrevista na sala do casarão. Estavam outra vez diante da casa, desta vez sentados em um banco de madeira, observando o entardecer refletido no lago. Suas mãos estavam outra vez atadas. O soldado mais jovem disse que, provavelmente, seria escalado para servir diretamente o barão, o jovem tenente que ele conhecera. O soldado mais velho pareceu a Quirino muito menos cordial. Disse ao outro que se calasse, pois nada sabia de concreto, fazendo apenas conjecturas. Disse que não haviam sido informados de nada, que nada se sabia entre os soldados e encerrou a conversa de modo brusco. No início da noite, vieram novamente buscá-lo para levá-lo ao casarão.

Quirino foi conduzido ao salão, onde o jovem barão o aguardava, sentado diante das janelas,  observando os últimos sinais do poente. Ordenou que lhe desatassem as mãos e dispensou a escolta, que se postou ao lado de outros soldados que cobriam as saídas do aposento. Depois, convidou-o a sentar-se ao seu lado e ofereceu-lhe uma bebida, que ele mesmo serviu em taças de uma delicadeza que Quirino temeu quebrar com a simples pressão dos dedos. Ficaram olhando o céu até que o barão perguntou se era um homem letrado e se conhecia as Escrituras. Quirino respondeu que aprendera a ler com os padres, escrevia com boa letra e capturava ditados com rapidez. O outro sorriu sem entusiasmo. Perguntou se apreciava o jerez e quando o preso afirmou desconhecer do que se tratava esclareceu ser a bebida que estava em sua taça. Quirino desculpou-se para dizer que não era grande apreciador de bebidas, que estava acostumado à aguardente. O barão sinalizou para o guarda mais próximo e poucos instantes depois surgiu um criado com uma bandeja onde havia uma garrafa, copos e pedaços de carne assada. O anfitrião informou que a aguardente era produzida na própria fazenda e que era muito elogiada. Quirino serviu-se e entornou um grande gole. Conversaram longamente, Quirino apreciando a carne, bebendo à vontade, com a permissão do barão. Este quis saber do preso a sua origem, os nomes de seus pais, se possuía irmãos, se tinha mulher. Depois, pediu-lhe que contasse histórias de sua infância e de sua vida no exército. Quirino, por sua vez, sentindo-se à vontade, arriscou algumas perguntas, mas recebeu poucas respostas. Soube que o barão herdara o título de seu pai, que o recebera do Imperador. Fora político influente, mas morrera há alguns anos, relativamente jovem, numa queda de cavalo. Quando questionou diretamente o barão acerca dos motivos pelos quais havia sido trazido até ali, este respondeu-lhe que estivera à procura de um homem corajoso,
que não se dobrava aos regulamentos descabidos. Tal homem deveria possuir alguns saberes e estar sofrendo punição exagerada ou injusta. Por fim, era preciso que tivesse um porte digno. Quando Quirino, sentindo a embriaguez embaralhar-lhe a língua, perguntou qual o motivo de tais atributos, o barão respondeu: "Porque não posso me deixar substituir por um qualquer".

Ao sentir-se amparado pelos soldados que o conduziam no ar frio da madrugada, Quirino lamentou que a confusão causada pela aguardente o impedisse de compreender e recordar com clareza o sentido de tudo o que se passara daquele noite: a conversa demorada, recheada de perguntas e silêncios, o ar sombrio do barão, o cachimbo de aroma pronunciado que compartilhara com este, as escadas, o porão úmido, mais e mais bebida, a farda de gala de oficial que agora envergava, mais escadas, o corpo amolecido, sustentado apenas pelo nó apertando as mãos e o corpo ao redor da estaca, os soldados à sua frente, o ruído das armas engatilhadas.

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