segunda-feira, 6 de julho de 2020

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff. A de hoje é inédita.  

O tosco


Uma de minhas distrações, agora que já quase não saio de casa, é receber a visita do Gigante Adamastor, meu amigo secular, o gigante mais curioso que conheço. Bem, acredito que todos vocês também o conheçam, ou deveriam conhecer. E é fácil chegar nele, porque está no Canto V – estrofes 37 a 60, da obra máxima da literatura em língua portuguesa, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões.

Ontem à tarde ele veio tomar uma latinha de cerveja comigo e, conversa vai, conversa vem, não me lembro por que ele trouxe a palavra “tosco” para nosso meio, dizendo, muito curioso, que não sabia muito bem o que tal palavra significava. Como há algum tempo, mexendo na minha coleção de palavras, o que faço todos os dias, mesmo aqueles que chamamos de inúteis por estarem no fim da semana, e de repente tropecei na palavra que atiçou a curiosidade do gigante.

Bem, comecei devagar porque tive de apelar para minha memória, que não é lá grande coisa, “tosco” é algo que não tem lapidação nem polimento, uma coisa rústica e grosseira. Por exemplo, uma pedra bruta, como é encontrada na natureza, pode ser chamada de tosca. Uma ferramenta em estado rústico, mal feita, imprópria para um uso mais delicado, um lavor mais fino, é uma ferramenta tosca.

É um adjetivo, concluiu o Adamastor, uma qualidade, não é mesmo?

Confirmei afirmativamente o que o gigante me perguntava.

Mas então, ele continuou, então pode ser aplicado também a pessoas!

Claro que pode. Uma pessoa que não foi criada em ambiente sadio, que não recebeu uma boa educação, uma pessoa assim pode ser tosca. Sem polimento, grosseiro, que usa em público um linguajar de baixa extração, um vocabulário de bar, como diriam os naturalistas, um bar sórdido, que não respeita seus semelhantes, que se supõe modelo para seus concidadãos, uma pessoa assim é tosca. Falta-lhe a lapidação que o ambiente familiar pode proporcionar, quando sadio e com algum refinamento social. Não teve oportunidade em família ou na escola de aprender aquilo que chamamos de boas maneiras, o comportamento adequado para o convívio social.

Eis o tosco.

O gigante secou sua latinha de cerveja e pediu outra porque me pareceu um pouco nervoso. Mas então, ele assustado, existem muito toscos andando por aí, não é verdade?

Concordei mais uma vez. Por aí e se apresentando como modelo para a maioria da população. O tosco geralmente gosta muito de se exibir porque acha muito bonita a tosquice.

Tosquice é substantivo, concorda?

Claro, e recém inventado. Trata-se de uma derivação sufixal.

Como não gosta de gramática, meu amigo deixou a latinha de cerveja pela metade, levantou-se e foi embora.

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