segunda-feira, 20 de julho de 2020

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff. A que postamos a seguir é inédita. 


Coisas da quarentena


Não que tenha alterado muito minha rotina, que se resume quase só à escrita e à leitura. O que alterou drasticamente são os chamados apelos externos. Se antes saía pouco de casa, agora simplesmente não saio.

A Rô, que a vida toda adorou arrumar gavetas, me arrastou para dentro de seu vício, e aproveitamos uma tarde que parecia destinada a um ócio e sua inutilidade para começar a mexer nas minhas, uma vez que as suas já estavam todas em ordem.

No primeiro dia, já conseguimos eliminar alguma coisa em volta de vinte quilos ou mais. Tudo papel cuja existência vinha ocupando espaço há muitos e muitos anos. Descobri documentos que supunha perdidos, cartas que não havia enviado, anotações para futuros romances. Ou contos. Se eu fosse guardar todos os prototextos de livros meus, com certeza teria trabalho para um pesquisador ocupar-se por pelo menos um ano inteiro. E isso que de uns anos para cá, meus rascunhos, os ensaios para alguma peça literária, são normalmente deletados, pois além de pequenos lembretes em bloquinhos
muito humildes, tudo o mais é feito e desfeito no computador.

Uma das descobertas no fundo de uma gaveta foram os originais recebidos há bastante tempo, coisa de uns oito anos atrás. Um jovem, presumível, porque são os jovens que procuram caminhos e por isso consultam os mais velhos, os que também não encontraram mas não procuram mais, pois como digo, um jovem me mandou um romance encadernado, bem feito como deve fazer todo jovem que pede opinião.

Não cheguei a ler o romance que, perdido no fundo de uma gaveta, ficou lá de seu esconderijo me xingando de desleixado por havê-lo tratado com negligência, pois durante tanto tempo em minha posse ele não sentira o calor de meus olhos desfraldando suas linhas. Não, meu caro autor. Juro que não foi negligência minha contra seu romance. Essas coisas acontecem bem fora de nosso controle. Recebi pelo correio um pacote, cheguei a ler o nome desconhecido do remetente, joguei fora o papel que o embalava e guardei a pasta com o romance. Me lembro bem que cheguei a folhear o
romance e o guardei para uma leitura cuidadosa.

Mil perdões meu caro autor. Não sei se o romance foi publicado, como não tenho como saber se o autor continuou insistindo nessa terrivelmente árdua carreira literária. Se desistiu, por não ter obtido uma resposta minha, não vou ter como tirar tal peso da minha consciência. Já imaginaram, podar uma vocação nascente, imaginar que hoje ele, o ex-futuro autor, esteja atendendo em um balcão de banco ou fazendo a declaração de rendimentos de uma porção de gente, isso é bastante doloroso.

Acho que não vou mexer nas gavetas que ainda estão intocadas. Mais uma descoberta dessas e perco a coragem de continuar escrevendo.

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