sexta-feira, 30 de outubro de 2020

CONTOS CORRENTES

 O ATO SEXUAL

(Hersch Basbaum)

Roberto chegara de viagem pela manhã, depois de vinte e três horas dirigindo o seu automóvel. Havia ficado mais de cinco semanas isolado em uma pequena casa, lá no alto da Serra, que um amigo lhe havia cedido. Para lá Roberto fora objetivando terminar seu livro. Livro esse, aliás, que já tinha quase dois anos, mas que nunca parecia terminar.

-Cid, me empresta aquela sua casa, palco de tantas festas inesquecíveis, lembra? É caro que sim, pois que, se não, não seriam inesquecíveis. Pergunta boba, não!? Tenho certeza de que se eu ficar lá sozinho, mas sozinho mesmo, eu terminarei o livro.

Foi dessa firma que Roberto se dirigira ao amigo. Tanto Cid quanto os demais amigos de Roberto, ansiavam para que o livro ficasse pronto. Toda a turma confiava no jovem iminente escritor e torcia pelo término do trabalho “eternamente em preparo”. E havia uma razão para toda essa expectativa. Ocorre que eles, há muito, formavam um grupo que tivera intensa atuação política, nos meios estudantis, em tempos idos. Roberto era líder do grupo – Jovens Intelectuais Ex-Marxistas Insurgentes- alem de mentor intelectual. A vida tentava, de todas as formas, separá-los e isso fatalmente aconteceria se nada surgisse capaz de novamente uni-los em torno de alguma coisa. Era isso que o livro de Roberto representava: uma bandeira, um manifesto, ou algo com condições de permitir formar uma corrente de opinião expressiva. Disso decorreriam novos “papos” até altas horas, discussões, excitantes brigas, etc.

Roberto tinha consciência de tudo isso e, na verdade, se aborrecia. Não lhe interessava ser líder e muito menos transformar-se em mentor intelectual de ninguém. Seus propósitos eram claros e nunca fez questão de escondê-los. Mas, infelizmente, a imagem que ele tinha de si mesmo não coincidia com aquela que seus amigos dele elaboraram.

Mas foi na segunda-feira, cedo, que Roberto retornou ao seu apartamento. Cansadíssimo, mal chegando, atirou-se à cama ao final da tarde.

O banho, a barba, enfim, a higiene pessoal não lhe roubou mais que meia hora. Ainda com uma toalha enrolada ao corpo, foi ao telefone.

-Cid? Oba! Sou eu. O Roberto, pombas! Hein!? É. Cheguei hoje. Cedo. Como? Sei lá a que horas! Hoje cedo! Não sei a que horas, pombas! Não me lembro! Mas por que a insistência, Cid? Ahn? Me procurou? Ela me procurou!? Tem certeza? Bem, assim que cheguei, caí na cama e dormi feito uma pedra. O que quer dizer dormir feito uma pedra!? Não enche! Dormi. Não, não escutei nenhum telefonema. É...azar meu. Quem sabe ela liga de novo. Tá. Se terminei o livro? Não, não term... Péra aí... Eu explico... Vagabundo não, poxa...eu explico. Sei. Sim, a casa era tua. Sei. Tá. Mas deixa eu falar! Deixa-eu-falar! Vá à merda! Ah! Acalmou, né! Cid, eu cheguei lá com a melhor das intenções. Você sabe. No primeiro dia fiquei o tempo todo arrumando a máquina de escrever. É, aquela bosta enguiçou. Bem, não é que tenha enguiçado. Mas o r... a letra r. Erre! Prendia. É! A maquina só falava chinês. Como ? É, chinês, faltava uma letla, estava queblada, não esclevia dileito. Entendeu, seu bulo!? Bem, mas continuando, quando acabei de arrumar a máquina... bem, já era tarde. Ora, tratei de preparar comida. Sabe, li dois livros geniais. Geniais! Sabe quais? Não quer saber? Cretino. Tá bem. Vou explicar. Escute... você não quer vir aqui?

Te conto tudo detalhadamente. Ah! Não pode, né!? Quer me encher o saco no telefone. Não tem problema. Não tem nenhum problema. Fico falando duas horas. Três horas! Cagão! OK. OK. No dia seguinte comecei. Não tava muito inspirado. Durante toda a manhã não saiu nem uma página. A culpa é do livro! Não do meu livro, sua besta! Do primeiro dos que li. Não vou falar dele não, pode ficar sossegado. Mas, à tarde, as coisas já melhoraram. Consegui escrever alguma coisa. Tanto é verdade, que me senti novamente inspirado. Direto, seu! Até altas horas da noite! Nem jantei! No dia seguinte, felizmente, pude continuar bem, durante a manhã. Mas depois do almoço foi fogo. Foi fogo, seu moço! Você sabe como é. Filosofia não é mole não. Se fosse um simples romance. Mas não. Você sabe qual é meu plano de obra. Tá bem, já sei que você sabe, poxa! Tá. Já sei que todo mundo também já sabe! Mas eu não ia falar nele, oras!!! O que ia dizer é que um romance de tese, onde as personagens representam pensadores do passado e do presente, fluindo dentro de uma linha básica, dentro de um contexto –verossimel enquanto proposição, mas absurdo enquanto situação- não é fácil escrever. Não se esqueça que a cada situação, cada personagem, seja Hegel, seja Sartre, Feuerbach, Kant, enfim, tem que ser fiel ao pensamento que construiu em suas obras! É, a idéia é boa. Obrigado. 

Mas exige um esforço intelectual brutal. Sei que já faz dois anos! Eu sei. Mas Cid se na minha história Kant toma o partido do amante, ele tem que dizer coisas que Kant provavelmente diria se realmente vivesse o problema. Não posso trair o pensamento de Kant! Não está em mim uma coisa dessas! Gostou, né!? É, eu sou espirituoso. Quem faz o marido traído? Já esqueceu? Georg Wilhelm Friedrich Hegel! Bem escolhido? Por que Hegel? É esse um problema típico de um idealismo objetivo ou não é? Ah!... não é!? Isso, na sua opinião, meu caro. Além, do mais, quem está escrevendo o livro sou eu. Não, não quero discutir isso agora. Não falo! Escuta Cid, você quer ou não que eu explique porque não terminei o livro? Então cala a boca e escuta! Bem, os dias se foram passando. Eu lia, escrevia, comia, dormia. Vida boa? Oba, se é! Um vidão! Aliás, mais ou menos. Por que? Te explico já. Bem, no meio da segunda semana, acabou a tinta e fiquei sem poder escrever. Tinta da máquina? Não, seu burro! Da caneta, é claro! Cid, se você quer me gozar, tenha mais classe e não faça indagações cretinas! Cretinas, sim! É claro que era da caneta, bolas! Da minha caneta! Mas que caneta!!!??? Então você não sabe como é que eu trabalho? Escrevo à máquina e depois corrijo à mão, cada página. Bem, eu trabalho assim.

Mas a tinta acabou e eu tive que sair para comprar. Fui, de carro, até aquela cidadezinha... como é que se chama?... Não. É, essa. Bem, na loja que eu entrei, tinha uma menina... nossa! Tremenda! Boa pra burro. Não é preciso dizer que fiquei gamado!

O pior é que ela me deu bola! Como é possível? Não enche! Você imagine que situação! Há quase duas semanas, sozinho, dentro daquela merda de cabana... desculpe, dentro daquela confortável casa... não vendo nada de sexo oposto nem mosca, Cid! Só mosquitos!- eu tinha que ficar excitado vendo aquela menina. Bem passei a ir todos os dias à tal cidadezinha –como é mesmo o nome? – isso.

Todos os dias na esperança de poder me aproximar dela e convidá-la para sair. Não conseguia nada. O chato é que a diaba me provocava. Provocava mesmo e na hora H tirava o corpo fora. Você pode pensar que situação terrível a minha: ter que comprar tinta todos os dias, depois canetas – estou com uma dúzia de canetas e outra dúzia de lápis!. – só pra ter uma chance de falar com ela! Mas isso não é nada. O duro é que não consegui mais ficar direito. Só pensava na menina. Tinha sonhos eróticos todos os dias. Eu só queria saber de sacanagem. Me esforçava –te juro que eu me esforçava- em tentar escrever, visando me esquecer de mulher, de cama... Mas não era possível. Lembro até que a minha história, de repente (não sei quando nem como escrevi) se deturpou. Tava todo mundo na sacanagem. Sartre comia Hegel. Hegel cantou a própria mulher, Simone de Beauvoir. Kant ficava se masturbando o tempo todo na busca da razão pura. Masturbação mesmo, não no sentido figurado. É! Fiquei completamente maluco! Veja como inspira sacanagem mulher e cama, o trecho que vou ler, que pus na boca de Hegel – “O bem (o ato sexual, é claro) é uma abstração privada de determinação; e o mesmo diga-se do dever (você está sentindo as insinuações?). Contra essa harmonia, pois, ressurge e é reafirmado o contraste posto como não verdadeiro no conteúdo dela; de modo que a harmonia (!) é determinada como qualquer coisa de meramente subjetivo – como qualquer cousa que deve ser somente, Isto é, que não tem realidade – como alguma coisa de suposto, a qual caiba somente a certeza objetiva e não verdade, isto é, não aquela objetividade que corresponde à idéia”. Que tal, Cid? Você não entendeu? Burro! Ignorante! Bem, Cid, já encheu essa conversa. O fato é que daquele dia em diante não consegui pensar noutra coisa que não fosse mulher. Não consegui pegar aquela pequena da loja, por isso me mandei de volta pra cá. Estou que não me agüento pra pegar a primeira. Como? Por que não fiz como Kant? Bem que me deu vontade! Mas não tive coragem. Além do mais, a cada dia eu tinha a esperança de conquistar a menina. Ora, e é chato paca! Sei que quebra um galho. Mas não dá pé. Bem, Cid, vou desligar. Já cansei. Me dá o telefone da Tereza. Oras, pode ser que ela não ligue de novo! Mas tem certeza de que era ela? Como você sabe? Ah! Puxa vida! Que sorte a minha! Ela é uma das maiores mulheres que vi em toda a minha vida! Não, poxa, não tô falando que é grandalhona, você sabe. Que pernas! Que peitos! Nossa, Cid, já estou ficando louco. Não aguento, Tcháu!

Já sem a toalha, e inteiramente nu, cantarolando alegremente.

-Oba! Tá chamando! Ta-ra-triiimm! Ta-ra-triiimm!Pombas! Ninguém atende! Oi!? Mas que sorte! Tereza!? Não!? Por favor, me chama a Tereza aí! Tá. Espero.

É Dr. Roberto, vai ser hoje o grande dia. Depois de cinco semanas! Cinco semanas a seco! Nossa, como é que estou! Parece que tem Raquel Welch, nua, na minha frente! Ôi! Como!? Quem está nua na minha frente?

Desculpe, Tereza. Tava falando sozinho. Você, como vai? Eu vou mais ou menos. Quer dizer, agora vou bem. È, agora. Ouvindo a sua voz. O que tem a sua voz? Está mais quente do que nunca! Você continua ótima? É claro que sim. Querida, meu amor...Como? O que tenho? Nada meu bem. Você não quer vir aqui agora? É, agora, agorinha? Por que sou louco? Você não pode? Eu te amo. Tereza! Amo, como nunca! Venha correndo, por favor! Morro de saudades! Venha já, venha como você estiver! Já! Não pode? Por que não pode? Saiu do banho? Está nua!? Não me diga que você está nua! Oba! Estou também terrivelmente nu! O que quer dizer isso?Sei lá. Mas você está nua? Nua, nuzinha, mesmo!? Meu Deus! Tereza, venha correndo, pelo amor de seus filhos! Sei que você não tem filhos, poxa! Nua! Encoste o telefone naqueles lindos e imensos seios morenos! Sou grosseiro? Por que? Desculpe... mas encoste. Por favor... Não... Não... Não...Te...re...za... Aiiiii.

Tereza, Kant era uma besta. Um imbecil! Até amanhã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças