sexta-feira, 6 de novembro de 2020

CONTOS CORRENTES

La última noche que pasé conmigo. 

                                       bolero estrigiforme

(Luiz Duboc)

(…) estas abominareis, serão abominação e o bufo, e a coruja estas devem vê-las, olhá-las como detestáveis entre os pássaros, elas não servem para comida.

Levítico, 11 – 13, 17


‘A noite perdeu as cores, deformou as formas, afoga.

‘Nada me espanta mais que o dia a dia. O cotidiano de todos os dias agora me engana perdida, vôo sobrevivendo, buscando qualquer coisa me espanto.

Reconheceria um sonho meu se o visse? Vislumbrei o sol morrendo sem horizonte. As imagens do hábito largam um sentimento de terror.

‘Acordei respirando mal no galho mais alto da larga e comprida figueira. Não dormi no campanário, a claridade se o sol é muito forte incomoda, volta e meia acordo, não durmo direito, tentar dentro do sino onde tem algum espaço na corrente que segura o pêndulo, nem é pelo sino que está morto desde que descobri o campanário, a igreja também abandonada, ali resolve se chove forte, não é lá muito cômodo. Nem bem no pico da torre onde se juntam os paus da cumeeira, escuro mas o sol se está forte chegam restos de luz, um forno de meio-dia até anoitecer. Melhor no cume pela copa da árvore mais gorda e galhada, no cocar de folhagens arrumo um quarto escuro, fresco e bate vento sem assustar. Esperando serena anoitecer de verdade.

‘Noite é meu dia, amor eterno invencível com todos os sentidos, meus olhos mais que a veem, a sentem, o olfato a escuta, meus ouvidos a respiram, toda a carne do meu corpo se delicia na ânsia gulosa na perdição da volúpia, basta o sol ir morrendo vai crescendo a alegria me invade, me sinto menos velha mais ativa, minha sombra na sombra negra me embriago na imensidade de escuridão, vibro meu grito de prazer, pros outros sinistro, nem conhecem a felicidade da solidão da noite. Amo a noite, nunca foi criança pra mim. Uma dona de meia idade que nunca envelhece desde que o sol morreu no horizonte a primeira vez. Não fosse a noite não sobrevivo sem seu trato gostoso de fiel companheira, é minha, estou, sou casada com noite, não fujo pra noite, a vivo, sou a noite. Quando começa o ar ligeiro anunciando o amanhecer, então, sim, fujo. Não dá, não sei como indicar, explicar, mostrar, me revelar contando pra que compreendam o fato, me entendam, não sei, sei só que é assim a minha noite.

‘Toda vez que acordei hoje da vigília preocupada com o que ainda vou pensar até a outra vigília. A noite tem seus caminhos. Caminhar por eles sozinho já me levou até a repetir ou errar o que sabia, pensava. Percorrê-la, percorrê-los, andar por um sendeiro tão irreal num destino tão real, mas falso, e em sendas tão reais em direções tão irreais, mas verdadeiras. Encontrar-se?, me encontro comigo toda noite em frente da escuridão, meu espelho.

‘Me trate por Suindara, me esqueci que quer dizer, estou faminta pra pensar nisto, têm modos mais rápidos de saber, se lhes interessa, não confundam com a Buraqueira, nada contra ela, não é bom ser confundida como quem não se é, não quero ser confundida com quem não sou. Ela é buraqueira profissional, moradias no chão, eu fico perto do céu, no alto das igrejas, não, não creio, minha fé trago comigo, sou fiel a mim, lá, no campanário onde batem os sinos, tem essa aqui perto, quando mais moça, no primeiro amanhecer que aterrissei no campanário, a música daqueles pianos com tubos, e cantorias, acordei assustada nessa única vez, hoje nem mais cura tem, no fundo, prefiro. Estou faminta, paciência tenho ou morria de fome, pouco mais de sorte ajudava, gambá matou metade da fome, o resto larguei na igreja, duas noites não garreio, três? perdi a noção, nem um rato, me queixar não adianta, vivem atirando na gente pra acabar com a má sorte, sorte a deles exterminar a nossa, estupidez vem com crueldade, se queixar não leva a nada.

‘Faminta e ressabiada, não da fome, mas cada vez que falava comigo vinha um ar feito fumaça feito me cobrindo, coisa de mortos pelos restos das noites. Falar comigo minha maior descoberta, minha mãe me largou sozinha lá em cima eu que aprendesse a nadar ou me emborrachava, pensar alto é boa saúde, vivi, me viciei.

Lógico que tenho ideias mas são pessoais, privadas.

‘Não sou dessas águias, falcões, condores que saem se pavoneando pelos ares, escapo deles, não disputo com urubu não disputo com irmão. Difícil de se ver coruja dando sopa, ainda mais eu nessa cor bege mais de burro quando foge me confundo, mais pra dormir, pra caçar tenho a minha noite que eu amo. 

‘Me conheço, me estabeleço, levo meus 40cm de ser maior e mais encorpada que meus machos, mais agressiva, não me deixo ser tocada, eu que decido na cara chata, parece um coração enfiado, carne dura no corpo me maldisseram no livro dos livros, não sirvo mesa, me matam com fome de matar eu mato pra comer. Só comida viva. Coxas iguais colunas, saem patas sólidas, vigorosos órgãos de pressão na hora de catar a presa, de trepar ou sustentar o sono de um ôlho só. Rematadas em oito dedos, seis servem de leme, feios, curtos, grossos sempre sujos, unhas-gancho sempre afiadas raspando nos galhos duros, telhas, nas argamassas dos campanários, pés de pavão ao lado dos meus são bonitos. Me valem até sei lá pra eu aguentar o impacto da prêsa. Voando três deles apontam pra diante, o quarto na retaguarda em prontidão, empoleirada assim na galhada ou a comida agarrada, o dedinho externo dos pés se vira pra tás complementando o dedo traseiro interno pra segurança mantendo o que for, me garante, equilíbrio urgente de uma perna só enquanto dilacero os pratos do dia.

‘Qual sujeito animal não troca seus olhos pelos olhos de coruja? Vêm de fábrica, dois tubos de imagens alongados direcionados pra frente, rodeados pelo meu disco facial de penas radiantes espalhadas, o ar que desloco não atrapalha ver, todas as horas abertos, mesmo de dia são capazes de tudo. Me  eduquei vendo.

‘Tem coisa se mexendo? O rato só vê, ou sente, ao se ver voando, as garras lhe dilacerando as costas, vai se entregando às garras, primeiro, único e último vôo dele.

‘Estômago sem peso, agradado, corpo quente, à cata da minha música, como quando larguei o tyto alba gordinho, meu quarto coruja. Suidara jovem, claro, alimentar as crias, sou boa, era boa nisso, rapinante de merda ele, eu tomava conta de tudo nem quis mais que ele tomasse mais conta do ninho, pra quê? só pra família até a família virar outra família e me mudar pra alguma torre sem família, bastaram as quatro famílias cumpri a sina, povoei o ar. Adeus mandando o gordinho e crias voarem pra viver.

‘Batendo ar ao léu na noite procurando igreja dei com o telhado do velho. Desci na ripa do pau que 
cerca a varanda ouvindo primeira vez la última noche que pasé contigo, o velho só canta essa. Outra vez de novo feito sempre me acomodo no telhado, o velho só canta a mesma, eu nem estava no ovo, nem tinha ovo pra mim ainda, o velho já no violão chorando voz do seu único amor. Ou de vários, todos são um só.

‘Vento gostoso passando entre as plumas. Ouvir a única música. Capaz de ser coisa de despedida. Feito ele, quem deve ter sido, como deve ter sido esse sujeito animal? nunca vi de pé só na cadeira de vime de balanço, abraçado no violão, os dois chorando. A paixão aí do velho vem com marcas novas dia a dia, o nariz cresceu, virou corcunda na cara num roxo desmaiado, era mais violeta, veias da cara sem ver água cheias dos ramos novos de videira que só dá folhas, tapume de sobrancelhas cobertas de neve igual a coroa cobrindo as orelhas na careca de frade, olhos carregados de cinza diminuíram, aguentando o brilho na bebedeira, a cachaça no chão ao lado do copinho, não bebe do gargalo, educação antiga, só não é monstro porque chora cantando.

‘Por qué te fuiste aquella noche 

Por qué te fuiste sin regresar

Y me dejaste aquella noche

Con el recuerdo de tu traición…’


‘A lua faltava chegar em cima da casa, começara

antes, hoje. Golada, sinal que começa de novo.


‘La última noche que pasé contigo

La llevo guardada como fiel testigo

De aquellos momentos en que fuiste mía

Y hoy quiero borrarla de mi ser


La última noche que pasé contigo

Quisiera olvidarla pero no he podido

La última noche que pasé contigo

Tengo que olvidarla de mi ayer.’


‘Escuto por aí que sou meio nada, nem sirvo pra comida, mas sinto, tenho sei lá o que, um palpite que me surge com frequência, uma inteligência? é uma intuição tão forte que você não tem dúvidas, tem nada de errado. Nunca usei curandeiro pra me dar uma resposta, muda nada, se doente iam me curar do que? se tem algum órgão funcionando mal e se pudesse apontar com uma garra, gozado, os curandeiros e os que não são curandeiros é que querem me usar, pra botar palavras deles na minha boca ou na minha dor? pra que nem ideia, tenho mais que fazer enquanto não desapareço, nem tenho a mínima curiosidade de saber porque, estou mais cansada do que de costume, mais pesada como se um mal crescesse secretamente, passo todas as horas comigo mesma. Acabo é sempre me perguntando se não sai da minha cabeça isso que está acontecendo, doença grave é não poder caçar, mal incurável é não ter o que comer.

‘Essa noite está mais escura que as outras. Desde quando dura a noite?

‘A memória confunde tudo. Fazia calor. O sol na lua. Tantas luzes no céu. As estrêlas pirilampos. O brilho confortando minha cabeça e as asas. Via claro os répteis. A jararaca atenta, petisco atento. O cachorro-do-mato perdido da matilha, um filhote de jacaré a mãe dando sopa. Sapo e sapa gozando a trepada. Garreei, descia e subia, um por vez. Me fartei, coisa de última ceia, vai ver. Fazendo a digestão. Lá pro meu telhado observando o velho coração destruído pela paixão. Tão segura minha vontade, descer na ripa do pau que cerca a varanda.

‘Se houvesse ripa do pau, se houvesse varanda, se houvesse o velho, se houvesse la última noche que pasé contigo.

‘Vou a cata das matas, quê matas? 

‘Onde anda meu cardápio imenso? todos os répteis, cobras se distraídas, jararacas mesmo atentas, marsupiais, galináceos, insetos, roedores, cachorro-do-mato perdido da matilha não a encontra, anfîbios na hora agá da trepada, filhote de jacaré se a mãe marca toca, passarinhos bobeando, basta. Nem me notavam, me aprontava, uma afiada mais na foice, vôo silencioso tiro partido da plumagem macia e felpuda, sei a rota da morte.

‘Ah, o campanário, o campanário.

‘Vôo se fosse pra salvar a vida de alguém, a minha própria vida, levava bem meu abismo do silêncio. Terror ter mais nada, tudo desapareceu no escuro. Ou na noite. Na noite. Ou no escuro. 

‘Cadê o manual do pastor, o cura quando aparecia na igreja, o sujeito alinhado no andar alto? gesticulavam bradando cada um seu manual, treco pra cretino, toda essa merda de sempre haver alguém, coisa superior, confiar no superior poder, bebê chora, taí o poder superior. Tem que não pensar, ou pensar como imbecil pra se entregar e tragar o tal poder superior e se salva. Nenhum poder salva. Deus nunca viu uma coruja. Ciência não alcança mas desconfia, quem sabe há outra realidade? Mas a ciência ainda não se importa de avisar quem sou dentro de outra realidade. Voei por aí, tenho olhos especiais se no escuro enxergo, já lembrei isso, vi bastante coisa na cidade, viu bem uma viu todas, assassinam, se matam, em toda cidade não muda. Tem isso do vício do dinheiro, é o que vale e o que conta.

‘Sem nenhuma intenção misteriosa, tenho minha experiência de me chegar, ficar, mirar atento, mimetizar e ser aliada, se puder, contra a força de algum mal que caia. Agora estou vendo o nada. Só tem eu e você, voando teimoso ou curioso chegou até aqui.

‘Choro pela primeira vez, nem tem nenhuma moral nisso, nem penso na arrogância de haver alguma moral se você, como eu, chegamos até aqui. Se esteja mais ou menos felizes de seguir vivos? pode ser. Ou não. Está escrito no tempo. Vida no mundo segue o acaso, o acaso vai na frente de nós todo dia. A vida no mundo são sacadas de todos animais a qualquer e todo momento, mesmo sem aviso. Infinitas vezes a vida terminar antes do animal envelhecer, coisa abominável. Loteria. O que há é acontecimento e suas consequências, tudo podia ser diferente ou tudo determinado e pré-determinado desde que não dormi no campanário antes de ontem, nunca foi ou é a questão, nem minha história na escuridão, nem a história é quem tem que dizer, minha história não vai dizer nada. Só nós dois, dois fodidos fazendo o que seja pra continuar vivo. Não perdida por causa dessa escuridão aqui fora, perdida dentro da minha escuridão, sei somente fisicamente quem sou, uma Suindara, mais nada. Cansada de voar atrás de comida e tirou a habilidade da obrigação de pensar. Às vezes o vazio interior acaba trazendo alguma paz, e procurar cume de árvore alta ocupa o resto do tempo. Vale o movimento, bater asas. Saber nossa localização, qual é tua longitude e latitude não é a mesma coisa de saber onde você está e o que está fazendo aí. Existem milagres ordinários, fantasmas ordinários, você descobre essas coisas como você envelhece batendo asas. Lá vou eu cansar de vez. Coisa mais pobre morrer de cansaço sem poder trabalhar seu dia de novo meus pratos do dia.’

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