quarta-feira, 4 de novembro de 2020

ORELHA

Esta coluna reúne apresentações de livros feitas por Menalton Braff. 

Uma família inglesa

Júlio Dinis que me perdoe a utilização de seu título, mas este aqui não é um romance, são apenas comentários mais ou menos descosidos a respeito de um romance, uma obra prima da escritora francana Vanessa Maranha. Escritora premiada que justifica seus prêmios e os ratifica com a qualidade de literatura que nos oferece.

Seu mais recente romance, “A filha de Mrs. Dalloway”, podemos dizer que é a ficção emoldurando a ficção. A Virginia Woolf comparece não mais como autora senão como personagem. É a irmã mais velha da Clarissa Dalloway e tia da protagonista do romance, a Elizabeth, filha de Clarissa. Essa, que comparecera como protagonista do romance “Mrs. Dalloway”, volta rediviva no romance da Vanessa. E dá à luz Elizabeth, quem nos ocupará por mais tempo.

Quando se quer definir um bom romance, entre outras coisas, deve-se destacar que um bom romance é aquele que põe em discussão vários aspectos da vida humana, quase sempre sem necessidade de sugerir soluções acabadas. A lembrança dessa peculiaridade nos veio da leitura deste “A filha de Mrs. Dalloway”.

Começando pelas emoções e sensações causadas por este livro, ocorre-me que durante a leitura me senti na praia, porque as cenas chegam como ondas que vêm, nos empolgam, cobrem-nos, escondendo a paisagem, com força, às vezes furor, para então retornar tranquilamente ao mar por algum tempo. As ondas do discurso da Vanessa, em  que pese a metáfora marítima, são de uma doçura inigualável para quem gosta das palavras.

Outra virtude deste romance é a escolha dos detalhes. São sempre importantes, descritos com extrema competência, o que resulta numa pintura palpável, quase material.

Mas é claro, nada do que se diz acima seria possível sem uma das características desde sempre marcantes da Vanessa: a extensão de seu vocabulário. A extensão e a propriedade. Sua riqueza vocabular é extraordinária sem cair no exibicionismo daqueles que, como contam de Coelho Neto, não podia ouvir uma palavra desconhecida que não a utilizasse em seu próximo texto. No texto da Vanessa Maranha, as palavras surpreendem pela exatidão com que são usadas, e isso nos mais variados campos do conhecimento.

E falando de surpresa, não se pode esquecer o ostraniene dos Formalistas Russos, que introduziram nos estudos literários este conceito do estranhamento. Sem ele, o texto pode tornar-se enfadonho, insosso, apenas informativo, quando informa. Esta é uma das mais altas virtudes da Vanessa, que a cada passo nos assusta ao conceber uma combinação totalmente estranha que tem como objetivo dar maior vigor à sua literatura.

O escritor literário é um inventor de linguagem. Em seu famoso texto “Instinto da Nacionalidade”, o Bruxo do Cosme Velho pontifica que o escritor de literatura tem de ser permeável à língua de seu povo, mas a língua que devolve tem de ser melhor do que a recebida, por isso é escritor. A Vanessa, nesse sentido, é uma autora machadiana.

Se descermos um pouco mais nos códigos usados pela escritora, podemos filiá-la à corrente literária para a qual mais importante do que o visível, são os movimentos de sua alma, seus valores, enfim, sua mais profunda humanidade. E isso, a Vanessa explora com suas personagens, incluindo aí a autora/personagem Virginia Woolf. 

Tendo como base de sua criação o ambiente londrino em que viveu Mrs. Dalloway, festas, saraus, regados a bebidas e discussões, este livro, tanto no ambiente londrino da mãe, Clarissa, quanto de sua irmã, Virgínia Woolf, e também em São Paulo, onde John é feito cônsul da Grã Bretanha, e Elizabeth, sua esposa, acha que vai morrer de tédio.

Nas três personagens femininas que conduzem a história, vamos encontrar conflitos em que se debatem em busca de uma justificação para estarem vivas, tentando dar algum sentido a suas vidas.

Vida e morte estarão sempre presentes, pairando como dúvidas, como tentativas de chegar a um ponto de repouso, uma verdade que lhes permita, enfim, mirar-se no espelho sem detestarem o que veem.

Questões como as levantadas pelas sufragistas acompanham essas mulheres, quando conseguem romper com as banalidades a que estão habituadas.

Enfim, um romance para o qual sua autora demonstrou familiaridade com Londres e São Paulo e que, sem dúvida, demandou muitas horas de pesquisa. Um romance que o leitor de literatura não deve perder.

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