
O conto que segue foi
tirado do livro
A coleira no pescoço, editado pela Bertrand Brasil no ano de
2006.
Os sapatos de meu pai
O dia começou
completamente sexta-feira, pensei enquanto levava o saco de lixo para a
calçada. Um céu úmido chuviscava irritação sobre a cidade indefesa e fria,
obrigando-me a proteger o rosto do vento molhado e escolher o lugar onde punha
os pés. As lojas vizinhas também levantavam suas portas onduladas. Minha rotina
dos dias pares, nossa escala entre as balconistas.
A três passos do
poste, junto ao qual deixaria minha carga, dois sapatos largos e sujos,
tamanhos, o direito esfregando-se na guia para se livrar do barro. Meu sangue
parou e todo meu corpo também. Só meus olhos mantinham alguma vida, mas não
ousavam subir além de dois palmos das pernas. O medo grudava-me no céu da boca
um gosto indeciso entre o morno e o frio. Qualquer coisa amarga em uma colher:
toma, minha filha, vai te fazer bem. Eram os sapatos de meu pai. Por tudo que
sei dele, eram os sapatos de meu pai.
Já não sei se o que me
resta dele, de meu pai, são reminiscências minhas, situações que eu mesma vivi,
ou são as lembranças de minha mãe, casos que ela me contava com olhos
brilhantes, muitas vezes de lágrimas, outras vezes de pura paixão.