
(Shellah Avellar)
― Quem é você?
Ela para. Olha fixamente o espelho à sua frente.
Fria e inconteste, aquela voz ecoava em sua cabeça, chacoalhando-a impunemente em um tom devorador de lobo faminto. Na velocidade de um raio, que, sem deixar dúvida, vai registrando cada ricto de dor passada, drama alheio de sua loucura, sulcada nas íngremes camadas de uma vida.
Desbrava as suas entranhas com a navalha afiada e impiedosa da realidade.
Não se esquece dos altos e baixos, nem do fog que acinzenta as cores que lhe foram sequestradas.
Das tempestades que lhe açoitaram as costas e lhe fizeram perder a postura empertigada. Do suor que explodia, irrigando os poros e drenando o pânico.
Ela não pestaneja. Enfrenta o espelho.
Responde:
— Não sou mais a artista. Sou a minha própria obra de arte. Sou o frêmito da minha embriaguez.
Mas o intrépido espelho revela as angústias dos sonhos não realizados.
Questiona o pescoço, já não tão viçoso como outrora. A pele flácida do colo. Um tecido que o ferro do tempo não alisa. Testemunha dos anos desleixados nos cuidados consigo mesma. Um papel impossível de rasgar.