sexta-feira, 15 de março de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

 O conto que segue consta da coletânea A coleira no pescoço, editada pela Bertrand Brasil, em 2006. 
De pombos e gaviões: suas distâncias

Nossa vila fica num remanso da estrada, que então se alarga, ali, no largo. O armazém baixo, atarracado - uma só porta aberta, estreita escura, duas janelas feito olhos vazados, diversos telheiros e galpões - cara a cara com a igreja branca, pesada, de janelas azuis. Entre os dois, a cruz de braços abertos enegrecidos sobre pequena pirâmide de pedras cobertas de musgo: salve sua alma, ela proclama sem grande utilidade. 

Depois, pouco mais de uma dezena de casas agachadas por debaixo das árvores - pobres, encarquilhadas - de janelas quase sempre fechadas e paredes encardidas de terra e tempo. E as árvores. Sujas de poeira, as árvores da beira da estrada.

O gavião volta a planar sobre a vila, em largos círculos. Seu guincho estridente estremece a planície. Geraldo termina de fazer a barba e olha pela janela para o alto, onde plana o gavião. Aquelas suas asas, translúcidas e paradas, tão frágeis, podem levá-lo aonde ele quiser. E, no entanto, depois de sumir por alguns minutos, lá está ele de volta. Alguma coisa deve atraí-lo cá embaixo para repetir o mesmo vôo, quando tem à sua disposição toda a vastidão do mundo.   

Já passa do meio-dia mas ainda não são duas horas. Agora o que importa é a vida, Geraldo medita com insistência. E suspira. A vida que vem pela frente. E é num frêmito que pensa isso. Como numa descoberta. Ele desce a única rua que cruza a estrada, com pressa, na direção do largo, pequena mala de couro na mão direita e a gaiola do pombo-correio na esquerda. Vem pensando. Vem pensando vagarosamente, que é o único modo sensato de se pensar debaixo de um Sol parado, ali suspenso, o Sol a meia dúzia de palmos de altura. Aqui nesta vila a vida não tem mais lugar, ele repete como quem descobre. E o lenço com que enxuga a testa desce marrom para o bolso.      
      
Toda vez que o vento sacode a cauda, um dilúvio de poeira fulva sufoca o casario - pobre, encolhido - de janelas quase sempre fechadas e paredes encardidas de terra e tempo. A poeira. E Geraldo coça a nuca suada.

Finalmente ele pára no primeiro degrau da pirâmide de pedras cobertas de musgo. E ali fica, suado e teso, imerso no sol, presa na mão direita a pequena mala de couro e na esquerda a alça da gaiola, que ele não se lembra de descansar no chão. Às costas, a cruz indicando maniqueisticamente rumos opostos. Olha para a estrada à sua direita, olha à  esquerda, os olhos quase fechados. E tosse, por vezes, porque o vento sacode a cauda.

Depois da passagem de Geraldo, a vila volta a ficar parada debaixo do sol. Parada como se ele tivesse acabado de atravessar a passo largo uma fotografia, descendo em diagonal. Nada que se mova além do vento. De vez em quando.

Sentado atrás do balcão, machuco os olhos no branco enfurecido da igreja, enquanto espero - e esperar é o que mais tenho feito na vida. De onde está, na claridade, Geraldo não pode ver-me: encoberto, eu, pelas sombras do armazém e do futuro. É uma posição de que poderia tirar alguma vantagem. Apesar disso, eu o vejo apenas de relance: mancha verde no branco fulgor da parede. Da igreja. Mesmo assim consigo perceber o ar meio idiota que ele faz ao pensar que agora o que importa é a vida, a vida que vem pela frente. Como se um homem que zarpa não levasse consigo todas suas cicatrizes.

A trote o cachorro baio desce a rua atrás de um afago que lhe escapa. O cão amarelo desce luminoso, desce doendo na vista como alguma coisa que vai embora sem olhar para trás, apressado. Ele vem farejando o rastro de Geraldo, assustado com  todas as possibilidades desconhecidas da vida que vem pela frente.

Não é bem isto, o que no momento importa:  a vida que vem pela frente. A vida que aqui fica, por causa dessa é que Geraldo fez sua mala, se despediu dos pais e da namorada e agora espera parado debaixo do sol: a vida aqui sem promessa nenhuma. Perscruta novamente a estrada, os olhos quase fechados e nem vê a chegada do cachorro baio, o focinho rente ao chão. A vida que vem pela frente é a vida vivida além do horizonte, onde o vento não sacuda a cauda. Onde a felicidade continue uma escolha possível.
Por causa do Sol e do calor, o ar está impregnado de um cheiro enjoativo. Algum animal morto, um velho coçando o tédio grudado no queixo, algum sonho desfeito. Desde aquela manhã este cheiro é nosso, está em nós, e por isso não o sentimos.

Maravilho-me por alguns instantes, contemplando este cenário, onde tudo parece equilibrado, com o casario costeando um trecho da estrada, protegido por seus pomares de folhas sujas de terra. Há o Sol a poucos palmos de altura arrancando faíscas da cruz de granito: Deus seja louvado, pois os braços desta cruz indicam os rumos possíveis, embora opostos. Há uma estrada de passagem. Só de passagem. E no centro, Geraldo, pensando ainda na vida que vem pela frente: o futuro, horizontes alargados, o longo caminho até a felicidade. Nada rompe a tranqüilidade da cena, a não ser o invisível: este cão amarelo, que desce a ladeira procurando um rastro e de repente irrompe no largo, a esperança que intumesce o peito do rapaz, este cheiro enjoativo das coisas que morrem. E, de vez em quando, um gavião a planar.

O cachorro não percebe o golpe que se arma no pé levantado e recebe a pancada na caixa do peito - um som cavo. O cachorro baio não percebe o golpe que se arma porque não acredita que seja um golpe o movimento que poderia também iniciar um afago. Recebe o golpe e seus olhos se apagam de dor. Então volta pelo mesmo caminho por onde viera, desaparecendo entre as casas pobres e encarquilhadas. Arrependido, talvez, de ter vindo, mas olhando inquieto para trás.

Geraldo percebe gotas de suor caindo sobre o pombo-correio. Então lembra-se de largar a mala e a gaiola no degrau da pirâmide. Enxuga na calça as palmas das mãos, marcadas pelas alças da mala e da gaiola. Sacode a cabeça, incomodado, o som do pontapé por dentro dos ouvidos, grudado no fundo escuro. Um desconforto, aquilo, mas sabe que a coragem é um exercício cheio de sacrifícios e renúncias. O mundo que o espera. Talvez tenha exagerado, afinal, fora sempre o amigo com que podia contar em quaisquer circunstâncias.  Preferível não pensar no mundo que o espera. Nem há como pensar nele, a não ser com os poucos recursos da imaginação.

Primeiro ele nota uma pequena coluna de poeira que se eleva perto do horizonte. Não serpeia como as demais, nem se extingue, efêmera. Além disso, aproxima-se em linha reta, crescendo por cima da estrada. Levanta bruscamente do chão a gaiola e a mala. Não conseguiria esconder a mancha branca de ansiedade que lhe marca o semblante.

Quando o caminhão surge da poeira por ele mesmo levantada, ali perto, visível, e pára na frente de Geraldo, o rapaz sobressalta-se absurdo: É tão grande seu desejo de evadir-se para além, pela estrada, que não tem coragem de embarcar. Assim é que, de repente, vê-se coberto de suor:  a testa, o peito, as costas. E as palmas das mãos, que se tornam escorregadias.

O motorista, a despeito de sua barba patriarcal, não tem no olhar a firmeza que inspira confiança, que promete um destino seguro. À primeira palavra  do motorista, Geraldo abre a gaiola e tenta soltar o pombo-correio. Que vá, ele, percorrer suas distâncias, mas, assustado, o pombo insiste em ficar protegido em sua gaiola. Irritado com teimosia tal, Geraldo enxota-o com a mão. Em pouco tempo o pombo some no arvoredo à beira da estrada.  Depois de jogar a gaiola aberta sobre a carroçaria, Geraldo vira-lhe as costas e sobe  apressado pela única rua que cruza a estrada. Talvez possa alcançar o cachorro baio.

Esse mesmo cachorro me acompanhou ainda por muitos anos - ele, meu companheiro fiel. Quando comecei a trabalhar aqui no armazém, ele deitava-se aí na porta, atento, as orelhas de pé ao menor ruído, protetor. Morreu no verão do ano passado, mas já não serviu de grande ajuda, sua morte: o gavião nunca mais tinha sobrevoado nossa vila.

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