domingo, 26 de maio de 2013

O CASARÃO RESENHADO NO BLOG QUATERNUS


O Casarão da Rua do Rosário, de Menalton Braff, pela Bertrand Brasil, 2012, 344 páginas
Publicado; 03/11/2012 | Autor: Valdemir Pires


Em O Casarão da Rua do Rosário, as inexoráveis marcas do tempo sobre as coisas, sobre as pessoas e sobre os relacionamento são pintadas por Menalton Braff com cores de tristeza, mas com nuances que fogem ao sombrio, marcando a memória com sabores de vitória sobre as adversidades — embora sejam, com frequência, percebidas, a posteriori, como vitórias de Pirro.

A ânsia de viver, que encontra acolhida para além do portão pesado do casarão controlado pelas tias solteironas e carolas (Benvinda, a terrível; Amélia, Ivone e Joana, as submissas), é contida, freada, cerceada pelas paredes carregadas de falsa tradição e poder do imóvel decadente, ameaçado pelos edifícios de um novo tempo.


Palmiro, o personagem-narrador, vive, como se fosse de favor (direitos de herança ignorados), juntamente com a mãe (Isaura, a caçula rebelde dos Gouveia de Guimarães) e as irmãs mais novas (Dolores e  Irene), no casarão dominado pelas tias, com apoio do irmão Romão (um alto cargo na prefeitura, que administra as finanças combalidas da família), por força de uma circunstância terrível: o sumiço do marido e pai, o mecânico Bernardo, preso pelos agentes da ditadura militar por causa de sua militância sindical.

Um depósito de rancores, o casarão abriga também, Ataulfo, o tio “lelé da cuca”, alienado e feliz com seus animais e plantas, amigo das crianças, tiranizado pelas tias velhas, que o tomam por um não-ser, arriscado de “ter parte com o demo” e, portanto, estigmatizado e isolado da convivência normal da casa, tão religiosamente regida. Ataulfo, um símbolo da inocência e da inoperância, no meio de um mundo novo se anunciando sobre os escombros da caducidade crescente de outro, retido na memória e em práticas mantidas por força de tradições e interesses dilacerantes para os discordantes. Aparecem por ali, vez por outra, os primos, com destaque para Rodolfo — futuro cunhado indesejado de Palmiro e político bem-sucedido, do lado oposto ao dele, acriticamente alinhado ao pai –, o favorito de Benvinda e devorador exclusivo dos figos reluzentes em calda tantas vezes negados a Palmiro, Dolores e Irene, os abrigados a contragosto, filhos do “baderneiro” Bernardo e da indócil e indomável Isaura, convidados ao “não quero” quando a guloseima é servida.

O lado libertário dos moradores do casarão (o núcleo Isaura, Palmiro, Dolores e Irene) sofre demais para sobreviver e se auto-afirmar diante das adversidades da vida e da pressão e falta de solidariedade do tio e tias (o lado reacionário), enfrentando cada dia como se fosse uma batalha, de uma guerra não só familiar, mas também política, como se a família estivesse cindida a partir de fora – o contexto da luta contra a ditadura. Angústia. Sem ter como resposta o desalento: a vida tem que continuar, a felicidade não pode ser como a sente Ataulfo, para quem a única tristeza é a ausência dos inocentes, que deixam de sê-lo (ao se tornarem adultos) ou deixam de ser (morrendo, como o papagaio, o gato e o cachorro tão estimados).

O casarão da Rua do Rosário sobrevive aos seus antigos residentes como um esqueleto, desprovido de vida e encantos, fadado ao desaparecimento, engolido pelos edifícios modernos e funcionais, plurifamiliares; e os sobreviventes ao casarão vão aos poucos se rearranjando, em novas vidas e núcleos familiares, sem, entretanto, conseguir isolá-lo de seus novos modos de ser e de ver a vida, posto que, quando ativo, lançou sobre eles uma maldição que não desgruda da memória.

É curioso o efeito do recurso da repetição de passagens inteiras utilizado por Menalton Braff (já presente, com menor intensidade, em Tapete de Silêncio): percebe-se que o que está sendo lido o foi anteriormente; mas, no novo contexto, ocorre um reforço de aspectos da sensação/percepção que o autor, aparentemente, deseja passar ao leitor.

O Casarão da Rua do Rosário não deve passar despercebido como um esforço literário na busca da compreensão e superação de tempos politicamente sombrios na América Latina, reduzindo a distância, nesse esforço, entre autores brasileiros, de um lado, e argentinos e chilenos, de outro, estes mais dedicados aos temas e impactos das respectivas ditaduras militares sobre a vida das pessoas, protagonistas (de um lado ou de outro) ou não de uma luta sangrenta, latente em veias ainda abertas. Algo alvissareiro nestes tempos de Comissão Nacional da Verdade.

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