O texto que segue é o primeiro capítulo do romance Castelos de papel, editado pela Nova Fronteira no ano de 2002.
Capítulo I
Capítulo I
Levantou os olhos do jornal e inundou a cidade num indiferente olhar azul,
seu olhar vidrado, quase aborrecido. De uma forma vagarosa e distraída, como
quem já não tem mais pressa de chegar,
porque já não tinha mais pressa de chegar. Nem aonde. Ecoava ainda no interior
de seus ouvidos o desconforto de um chamado ou sua impressão, e era impossível
ter certeza. Tentando concentrar-se para descobrir que apelo poderia ser
aquele, seu pensamento perdeu-se por alguns instantes em coisas miúdas que lhe
entulhavam os olhos, como o motorista manobrando o carro para ocupar uma vaga menor
do que o carro, seu modo brusco de gesticular, o avião que passou e se escondeu
atrás de uns edifícios, a felicidade do cachorro ao voltar com o bastão entre
os dentes. Não chegou a formular uma síntese do que via ou sentia. Não eram
propriamente pensamentos, mas sucessão de imagens descosidas: o instante.
Estivera lendo, bem sabia, e a prova disso eram as palavras que ainda boiavam
em seus olhos. Abertos ou fechados. Mas eram palavras, apenas, sem qualquer
ligação entre si. Negras e oscilantes, voavam sem formar fila: bando caótico.
Não chegavam a compor uma frase. Por isso, não sabia, não conseguia lembrar o
que estivera lendo antes de levantar os olhos do jornal. E inundar a cidade com
seu olhar azul.
Nunca lhe fora difícil fingir que tudo percebia, até mesmo o que não via,
o que estava fora de seu raio de vida, como a faina dos insetos que apenas
adivinhava em volta das flores. Porque havia flores nos canteiros expostos ao
sol. Muitas vezes já experimentara aquela mesma sensação: de que conseguia perceber
até o que apenas adivinhava. Por isso é que supunha ter estado lendo o caderno
de economia do jornal. Com certeza. Havia mais de quarenta anos vinha lendo o
caderno de economia do jornal. Às vezes resolvia bisbilhotar outras seções,
curiosidade apenas, o ócio tem destas surpresas. Não conseguia entender como
uma pessoa civilizada, precisando mover-se por este mundo moderno, tortuoso e
difícil, pode guiar-se dispensando a leitura do caderno de economia de um
jornal. A princípio leu por necessidade: havia cargos a conquistar. Mais tarde
fora necessário mantê-los. Finalmente a leitura tornou-se um prazer estético:
causava-lhe imenso gozo descobrir simetrias financeiras, pluralidades
mercadológicas, semelhanças e diferenças técnicas. Já não tinha necessidades além de respirar, comer, dormir: destas
necessidades que costumam chamar de essenciais. E algumas existenciais, como
conversar com amigos, dar afeto à família e dela receber outro tanto. A leitura
do jornal, não sabia se com razão ou sem ela,
classificava no grupo onde apareciam respirar, comer, dormir, porque era
uma espécie de premência física.
Uma voz de menina?
Então seus netos começaram a escalar lentamente sua memória. Existiam por
aí, em volta, soltos e barulhentos: os três. Última vez que os vira, que lhes
dera alguma atenção, jogavam peteca debaixo do sol. Peteca. Hábito que lhes
incutira, desde cedo, porque um dos cortes fundos em suas carnes de criança:
via e desejava; desejava pesadamente, como um mormaço, porque era um desejo com
inveja. Sem meios de realizar seu desejo. Com os filhos teve outro
procedimento: a carreira exigia-lhe concentração - todas as suas forças - não
os viu crescer. Os netos, entretanto, vieram-lhe em momento propício: o ócio
possível, sua disponibilidade.
Como o rumor da cidade: permanente. Mas nunca se lembrava do rumor
permanente da cidade. Sabia apenas que ele estava lá, no fundo silencioso da
existência, sem que fosse notado. Ele
sabia que a cidade estava produzindo um
rumor, nem por isso o rumor estava concreto em sua consciência, como uma coisa em si. Era apenas um
conhecimento disponível, uma lembrança armazenada. Um conhecimento disponível e
desativado. Assim também a Vergueiro S. A., onde passara a maior parte de seu
tempo nos últimos sessenta anos. Sabia de sua existência, sabia até onde ela
estava, mas não estava sempre com a Vergueiro na consciência. Percebe-se o
estranho, o descontínuo; o permanente desce para o fundo, esconde-se no escuro.
Os netos.
Onde estariam eles então?
A pergunta transformou-se imediatamente em pensamento -
complexo instantâneo, intenso como um susto: parecia que ouvia alguém chamá-lo,
onde seus netos?, trouxera-os como costumava fazer aos domingos para brincarem
no parque enquanto lia o jornal e a última vez que os vira jogavam peteca
debaixo do sol.
-
Vovô!
Ao volver a cabeça na direção de onde estava sendo chamado, piscou
palpebramente prolongado, recolhendo aquele mesmo fragmento da cidade que, mais
tarde, a cabeça no travesseiro, mas ainda sem dormir, voltaria diversas vezes,
confuso e aparentemente despropositado. O pedaço de cidade que seus olhos
recolhiam sem atinar com qualquer tipo de serventia. E toda a vez que se
esforçasse, tentando lembrar-se de tudo o que acontecia naquela manhã, mais ou
menos à mesma hora, voltariam os mesmos edifícios distantes, o lago com sua moldura de chorões, a ruela de saibro
antes da rampa gramada, os fícus em cuja sombra se protegia do sol. Mas a
paisagem continuaria sendo apenas um conjunto de formas que lhe escondiam a
verdade ou, pelo menos, que nada revelavam.
Quando finalmente viu sua neta
de pé, a cinco passos, imediatamente adivinhou. Ela estava empertigada, quase
ansiosa, seu modo de ser formal, porque, em sua orgulhosa concepção da vida,
não devia jamais pedir e com sua idade não havia como manter-se fiel a sua
concepção da vida. Então era preciso
facilitar-lhe o caminho e, levantando-se, ofereceu-lhe sorvete, que ela aceitou
com um movimento brusco e orgulhoso de cabeça.
O sorveteiro, sem interferir, observava a cena enquanto esperava o
resultado que já conhecia, não somente por presunção sua, o que não seria
ilógico, mas por seus conhecimentos da história. Ocupava o centro da pequena
sombra redonda pouco mais que a imaginação de um guarda-sol de lona azul com
franjas brancas. O suor lhe descia da testa e fluía pelas rugas profundas do
rosto, atestando a oportunidade de seu humilde ofício.
Gulosa, depois de tanta peteca
debaixo do sol, Emília disparou na direção do carrinho de sorvetes. Seus primos
perceberam o que estava acontecendo e conseguiram chegar ao carrinho ainda
antes que ela. Barulhentos e masculinos cada um pediu o seu. Era mais ou menos
aquela a felicidade que ele vinha através dos anos pedindo a Deus. Poder enfiar
a mão no bolso, confortavelmente, para pagar o que a família quisesse, mesmo
suas extravagâncias. Isso, para ele, era poder, essa sensação agradável de que
se pode o ilimitado. Nisso empregara sua vida, o melhor de sua vida. E o pior.
Mas era provavelmente aquela sensação, anunciada despudoradamente por todo o
corpo, que sentiu acusada pelo olhar duro-penetrante do sorveteiro, quando se
aproximou com a carteira na mão. Os olhos azul-cinza, as rugas profundas do
rosto, o cabelo branco e liso em desalinho, o macacão de zuarte surrado, aquela
cruz de ferro fechando a entrada do peito, tudo nele uma peça de acusação.
Parecia muito cansado, parecia uma alegoria da derrota.
Pagou tão rápido quanto pôde e afastou-se em fuga para baixo dos fícus,
onde estivera lendo. Não olhou para trás, mas adivinhava o olhar perquiridor e
rancoroso do sorveteiro a examiná-lo. Tentou refletir sobre a fragilidade do
equilíbrio e do conforto, entregue então a um mal-estar inesperado. Tentou, mas
seus pensamentos eram tormenta fragorosa. Mexeu nas folhas do jornal, que o
vento embaralhava: assunto nenhum que o pudesse interessar. Levantou-se com
raiva e chamou os netos: hora de voltar.
*
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