sexta-feira, 4 de julho de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto a seguir está publicado no livro "A coleira no pescoço", publicado pela Bertrand Brasil.

Joana
Oh! que pai infeliz!
E, se eu o condenei, por vossa causa o fiz.
Cruel! Suporeis vós que estais justificada?                                                                                             (Teseu)

Esta casa ficou escura assim tão grande, sua imensidade, depois que eles se foram. E vazia. Não mais vazia do que eu, entretanto, que passo meus dias a contar minutos e passos pelos corredores. Mas vazia o suficiente para que me sinta angustiada, sabendo que não posso estar em todos os cômodos ao mesmo tempo. Nunca sei o que acontece onde não estou, como não sei o que aconteceu em minha casa, as causas de tanta desgraça, enquanto estive fora. À tarde, principalmente, ao cair da tarde, ouço as vozes dos dois conversando e rindo na cozinha, se estou na sala; ou no quarto, se estou na cozinha. Tudo acontece onde não estou. Quando me aproximo, calam-se e mudam de lugar. Como duas sombras silenciosas, suas asas carregadas de pretas nuvens. Às vezes chamo um dos dois, à noite, principalmente, quando costumávamos estar reunidos, e tenho a impressão de ouvir a resposta.

Preciso acender as lâmpadas, iluminar esta casa. Toda. Tenho necessidade de muita luz, de luz que me ofusque e me esfole as vistas, que me jogue dentro do espelho, com meus gestos vacilantes, mas, enfim, movimentos de meu corpo. Só a claridade me põe para fora de mim mesma e evita esta asfixia que me atacou no domingo passado e não me abandonou mais. O que me falta é ânimo de levantar desta cadeira, de percorrer os lugares onde os vi nestes últimos três anos.
Amanhã de manhã, ordeno que se abram todas as janelas para expulsar suas lembranças de meu espaço. Quero uma invasão de sol e que o ar puro fareje os cantos mais recônditos da casa. Se não fizer isso, vou viver confinada em minha escuridão.
Na volta do enterro, eu percebi que estava incompleta, então me fechei no quarto até que as últimas vizinhas tivessem ido embora. Não suportava mais tanta invasão. Não suporto mais a companhia das pessoas, todas elas querendo me consolar. Não é de consolo que eu preciso, é de certeza. Nem a televisão eu ligo mais porque é impossível evitar a alegria. E eu não quero me sentir alegre. Já reli aquele maldito bilhete até gastar as vistas e o papel. Inútil. Não vou além da letra nervosa de Pedro tentando aparentar uma frieza que não é dele. Me afasto desta casa por causa de sua filha, diz ele no final, antes de assinar.
Estava anoitecendo, quando entrei em casa, e nenhuma lâmpada estava ainda acesa, mas não cheguei a estranhar a escuridão: eu, toda iluminada por dentro, como vinha. Domingo à tarde, nenhuma rotina nos prendia, nada nos obrigava, cada um dono de seus afazeres. Ninguém na sala, na cozinha ou na biblioteca. Ninguém em lugar algum da casa. Os móveis, encolhidos mudos na penumbra, negavam-me a história que tinham testemunhado: sinal algum. Ao entrar no quarto, finalmente, e encontrar seu guarda-roupa aberto e vazio, foi que percebi. Sobre meu criado mudo, sua explicação: por causa de sua filha. A primeira leitura me levou ao desespero. Anita, meu Deus, Anita, por baixo da santidade! Então odiei minha filha e queria vê-la morta.
Agora releio o bilhete com os olhos nublados de dúvida. Por causa de sua filha. Mas o que poderia ter feito minha doce Anita para ser assim culpada pelo abandono em que Pedro me deixou? Foi o que li pela primeira vez e a expulsei de casa sem ouvir qualquer explicação. Só agora percebo que a causa pode ser diferente da culpa.
Cega de dor. Foi assim que ela desceu estas escadas, sabe-se lá com que propósito. E até penso que sem propósito algum. Ela tão-somente gritava isto é uma monstruosidade. E repetia aquilo desvairada. Como desvairada desceu correndo as escadas. Queria, talvez, apenas atravessar a rua, afastar-se de mim, que tão rudemente a acusava, fugir para qualquer canto do mundo onde não a alcançasse minha maldição. Como saber? Corri até a janela, quando ouvi o guincho dos pneus no asfalto. O trânsito estava parado e uma multidão aglomerava-se no meio da rua. Ela tinha-me escapado definitivamente.   
Meu sentimento de vitória, naquele instante, me enche agora de remorso. Nem o pensamento de que ninguém pode escapar de uma fatalidade tem o poder de me consolar. O bilhete não esclarece nada, mas sugere um mundo tenebroso. Entre causa e culpa vou remoendo minhas horas, e as piores são as horas do anoitecer, quando as sombras começam a invadir a casa, tornando o ar mais denso e pesado. 
                                                                  *

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