O conto a seguir está publicado no livro "A coleira no pescoço", publicado pela Bertrand Brasil.
Oh! que pai infeliz!
E,
se eu o condenei, por vossa causa o fiz.
Cruel!
Suporeis vós que estais justificada? (Teseu)
Esta casa ficou escura assim tão grande, sua imensidade, depois que eles
se foram. E vazia. Não mais vazia do que eu, entretanto, que passo meus dias a
contar minutos e passos pelos corredores. Mas vazia o suficiente para que me
sinta angustiada, sabendo que não posso estar em todos os cômodos ao mesmo
tempo. Nunca sei o que acontece onde não estou, como não sei o que aconteceu em
minha casa, as causas de tanta desgraça, enquanto estive fora. À tarde,
principalmente, ao cair da tarde, ouço as vozes dos dois conversando e rindo na
cozinha, se estou na sala; ou no quarto, se estou na cozinha. Tudo acontece
onde não estou. Quando me aproximo, calam-se e mudam de lugar. Como duas
sombras silenciosas, suas asas carregadas de pretas nuvens. Às vezes chamo um
dos dois, à noite, principalmente, quando
costumávamos estar reunidos, e tenho a impressão de ouvir a resposta.
Preciso acender as lâmpadas, iluminar esta casa. Toda. Tenho necessidade
de muita luz, de luz que me ofusque e me esfole as vistas, que me jogue dentro
do espelho, com meus gestos vacilantes, mas, enfim, movimentos de meu corpo. Só
a claridade me põe para fora de mim mesma e evita esta asfixia que me atacou no
domingo passado e não me abandonou mais. O que me falta é ânimo de levantar
desta cadeira, de percorrer os lugares onde os vi nestes últimos três anos.
Amanhã de manhã, ordeno que se abram todas as janelas para expulsar suas
lembranças de meu espaço. Quero uma invasão de sol e que o ar puro fareje os
cantos mais recônditos da casa. Se não fizer isso, vou viver confinada em minha
escuridão.
Na volta do enterro, eu percebi que estava incompleta, então me fechei no
quarto até que as últimas vizinhas tivessem ido embora. Não suportava mais
tanta invasão. Não suporto mais a companhia das pessoas, todas elas querendo me
consolar. Não é de consolo que eu preciso, é de certeza. Nem a televisão eu
ligo mais porque é impossível evitar a alegria. E eu não quero me sentir
alegre. Já reli aquele maldito bilhete até gastar as vistas e o papel. Inútil. Não
vou além da letra nervosa de Pedro tentando aparentar uma frieza que não é
dele. Me afasto desta casa por causa de sua filha, diz ele no final, antes de
assinar.
Estava anoitecendo, quando entrei em casa, e nenhuma lâmpada estava ainda
acesa, mas não cheguei a estranhar a escuridão: eu, toda iluminada por dentro,
como vinha. Domingo à tarde, nenhuma rotina nos prendia, nada nos obrigava,
cada um dono de seus afazeres. Ninguém na sala, na cozinha ou na biblioteca.
Ninguém em lugar algum da casa. Os móveis, encolhidos mudos na penumbra,
negavam-me a história que tinham testemunhado: sinal algum. Ao entrar no
quarto, finalmente, e encontrar seu guarda-roupa aberto e vazio, foi que
percebi. Sobre meu criado mudo, sua explicação: por causa de sua filha. A primeira
leitura me levou ao desespero. Anita, meu Deus, Anita, por baixo da santidade!
Então odiei minha filha e queria vê-la morta.
Agora releio o bilhete com os olhos nublados de dúvida. Por causa de sua
filha. Mas o que poderia ter feito minha doce Anita para ser assim culpada pelo
abandono em que Pedro me deixou? Foi o que li pela primeira vez e a expulsei de
casa sem ouvir qualquer explicação. Só agora percebo que a causa pode ser
diferente da culpa.
Cega de dor. Foi assim que ela desceu estas escadas, sabe-se lá com que
propósito. E até penso que sem propósito algum. Ela tão-somente gritava isto é
uma monstruosidade. E repetia aquilo desvairada. Como desvairada desceu
correndo as escadas. Queria, talvez, apenas atravessar a rua, afastar-se de
mim, que tão rudemente a acusava, fugir para qualquer canto do mundo onde não a
alcançasse minha maldição. Como saber? Corri até a janela, quando ouvi o
guincho dos pneus no asfalto. O trânsito estava parado e uma multidão
aglomerava-se no meio da rua. Ela tinha-me escapado definitivamente.
Meu sentimento de vitória, naquele instante, me enche agora de remorso.
Nem o pensamento de que ninguém pode escapar de uma fatalidade tem o poder de
me consolar. O bilhete não esclarece nada, mas sugere um mundo tenebroso. Entre
causa e culpa vou remoendo minhas horas, e as piores são as horas do anoitecer,
quando as sombras começam a invadir a casa, tornando o ar mais denso e
pesado.
*
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças