
Saiba mais sobre a obra, acessando a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.
Menalton Braff. Bolero de Ravel
1
Não quis descer do carro, a Laura, com seu corpo ocupado e
cheio de compromissos para amanhã. O volante preso em mãos crispadas. Bem cedo,
repetiu com sua única fisionomia. A vida toda, os compromissos. Ela foi uma
criança de viver muito, seus dias organizados. Minha irmã não sabe viver sem
estar envolvida, sem estar enredada nas tramas de alguma rede. Ela nunca teve
preferência por ter sua vida solta dentro das horas. A Laura nunca se move pelo
prazer do movimento. Jamais a vi dançar sem algum propósito prático. Seu
itinerário é uma linha reta, com destino certo: o destino. E hoje eu precisava
de sua ajuda, precisava de que ela me ajudasse a espantar estas sombras que em
silêncio invadem a casa e me engolfam aqui dentro e me sufocam sem me deixar
porta nenhuma de fuga. Esta sala, agora, sem ninguém, é somente um lugar: o espaço.
Se ao menos uma janela aberta. Mas não, a vida é outro lugar, o lado de fora.
Vontade nenhuma de ver ou de pensar. Meus olhos queimando
quero aqui guardados. O sofá está quente e não sei se já estava quando cheguei.
Não sei se não estou sentindo o incômodo de meu próprio calor. Não me sinto bem
aqui. Não me sinto bem em lugar algum. Para onde olho, qualquer direção,
adivinho ameaças.
Foi um dia sem fim, um dia em que não me estive. Deixei que
me levassem para um lado e outro, levado aonde julgavam necessário que eu
fosse. E fazia muito calor, um sol que arrancava reflexos estridentes daqueles
pára-brisas em lenta fila. Uns reflexos amarelos com o perfume enjoativo de
sempre-vivas. O amarelo fazendo estardalhaço entre os túmulos. Sentado imóvel,
eu via um cachorro baio brincando na areia enquanto se aglomeravam sobre o mar
umas nuvens escuras e de olhos muito abertos. Elas se agitavam como se
estivessem nervosas. Ou irritadas. E eu me sentia ameaçado, por isso não
conseguia sair do lugar. Por mais que tentasse, não conseguia sair do lugar com
meu corpo grosso e sólido enterrado na imensidão de areia. Ao alcance da minha
vista, a Laura e o namorado jogavam frescobol como se eu estivesse tranqüilo.
Quando ela parou na frente do portão, fiquei esperando que desligasse o motor
do carro e ela ficou me encarando à espera de que eu me despedisse e entrasse.
Era sua ajuda, que eu esperava. Minha irmã bateu com as duas mãos no volante,
Vários compromissos amanhã cedo, Adriano, jeito nenhum de adiar alguns deles.
Seu rosto deformado pelo inchaço, principalmente em torno dos olhos, fechou-se
obstinado, naquela obstinação que desde criança eu bem conheço. Fiz olhar de
quem não entendeu, que é um olhar parado e sem dizer nenhuma palavra. Baço
mesmo, de olho vidrado. Depois eu volto pra gente discutir o que fazer com tudo
isto, e seu queixo em riste apontava para nossa casa. Seu queixo com a
utilidade que tem.
Descendo do carro, pisei a calçada que o sol ainda
requentava, um sol remanescente nem por isso menos agressivo. Tive a impressão
de que algumas pessoas andavam por ali, indo e vindo naquela paisagem que já
não significava mais nada. Não tinham fisionomias e eram conduzidas por pernas
automáticas. Elas eram sombras em movimento, sombras silenciosas em movimento,
e não tinham nenhum sentido para mim. Vários compromissos amanhã cedo. E sem
que eu respondesse ou desse qualquer sinal de dúvida, ela acrescentou, jeito
nenhum de adiar alguns deles. Os carros passando pela avenida em cortejo, com o
ronco de seus motores não me deixavam descansar.
Agora eu só queria fechar os olhos e dormir, mas um dormir
denso e por dentro, de cortinas cerradas, para escapar deste pesadelo e desta
sensação de terem jogado areia em meus olhos.
O piano já se dissolveu no canto da sala, transformado em
mancha escura e imóvel, amoitado e mudo, completamente anoitecido. Os quadros
também sumiram da parede em frente. O ar ficou escuro, e mais adivinho do que
vejo a mesa e as cadeiras, o sofá e as poltronas do ambiente com piso elevado à
minha esquerda, mas sei que está tudo ali. Fecho os olhos pisados e secos e
mesmo assim eu sei, porque sempre estiveram no mesmo lugar. Duas vezes já ouvi
meu pigarro como voz que vem de fora e me exprime. Minha única voz. Aqui dentro
já está completamente noite e lá fora não me interessa saber se também
anoiteceu. Desci com algum cuidado, meu corpo todo esperando algum desastre, um
fenômeno sem nome e desconhecido que me engolisse em seu vórtice. Desde cedo,
este sono me arrebata e vivo uma meia realidade, com o cérebro em fragmentos
descosidos. Bati a porta do carro e ela arrancou em disparada, cantando os
pneus, sem esperar que eu atravessasse o portão. Não olhei para trás, como se
com isso conseguisse anular aquela tarde que o tempo todo me comprimiu a cabeça
em suas tenazes. Queria anular o dia todo, precisava trazer de volta pelo menos
uma semana, para então refazer o percurso de nossas vidas.
Estou sozinho e não sei o que fazer de mim.
Minha irmã é uma dessas pessoas que julgam salvar-se na
ação. Não tem outra existência além da que lhe dá o movimento. Ela exerce com
tirania o controle de seu tempo, mas já não sabe mais por quê. Debaixo do
tamanho daquele Sol, que nos mantinha ali presos, a Laura jogava frescobol com
o namorado. Os pés enterrados na areia. Acho que estão dormentes, o dia todo de
pé, formigando no interior dos sapatos. Melhor descalçá-los.
Muitos eu nem conhecia. Estendiam a mão para meus olhos em
chamas e davam-me os pêsames com voz mecânica de muito pouco sentido. Se não
tivesse ficado ao lado da Laura, sei bem que não viriam me cumprimentar. Os
mais íntimos ainda diziam que grande perda, procuravam dizer outras palavras de
consolo, que nunca encontravam, e se despediam com a dor da perda estampada no
rosto. A Laura pegou a Fabiana pelo braço e se afastaram com seus assuntos.
Eram acertos delas. Fiquei do lado de fora, muito parvo, olhando as duas como
se fizessem parte da paisagem. Não sei onde ela foi arrumar aquele vestido
preto tão sóbrio. Numa hora pensei, Minha irmã está uma bela órfã, e me
arrependi imediatamente de ter tido ali, entre covas e túmulos, um pensamento
assim mundano. Não, não era insensibilidade, mas quando tenho o tempo todo sem
nada para fazer, a não ser esperar, não controlo meus pensamentos. Como agora:
apesar de não estar esperando nada, preferia descansar meu cérebro gasto, mas não
consigo.
A noite já terminou de começar e não me traz paz ou sossego,
apenas sinto que a espera vai prolongar-se, a espera por nada. Poderia acender
a luz e conviver com móveis conhecidos, apesar de terem perdido a
familiaridade. O difícil, o que me impede de jogar luz sobre a sala, é que não
vou entender estas formas com que desde criança estou acostumado, se agora, ou
de agora em diante, vou ter de refazer meu mundo e não sei como se faz isso.
Melhor é dormirmos ocultos uns dos outros por esta sombra fria. Nem de comer
tenho vontade. Fico aqui medindo o tempo com meu corpo imóvel, pois não me
apetece acordar fantasmas nos outros cômodos desta casa.
Tenho a impressão de que meus braços estão arrepiados. Se a
noite traz frio, por onde ele entra?
Preciso me deitar um pouco no sofá, talvez passe esta dor nas costas. O diretor
da escola, com sua altura na altura do palco, suportava todo o claror dos
lustres e spots, aquelas luminárias. O salão lotado esperava o nome do campeão,
que pouca gente já sabia quem era. O sofá perdeu seu calor, o sofá? Meus pais e
eu, sentados mais ou menos nas poltronas do meio, muito quietos, fingíamos não
saber também. A gente se olhava com seriedade marcando o rosto. Meu pai e minha
mãe mal escondiam o orgulho. Quanto a mim, sentia frio nos braços e achava
aquilo tudo uma chatice. O frio não é tamanho que me faça buscar um cobertor.
Muito cansado, isto sim.
*
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças