Voando com Maura Lopes Cançado
(Eltânia André*)
Maura!
Maura! Maura!
Senti a minha boca se abrindo para aquele nome. A voz apelando, ora disfônica,
ora ritmada - conduzida pela potência do som do tambor das mais remotas eras de
comemorações e rituais. Um ardido deslizou pelas vértebras, como naquele dia da
queda do CAP 4, prefixo
PP-RXX, ou
quando ela jogou a máquina de escrever pela janela da redação do jornal.Maura! Maura!
Maura!
Maura!
Maura; você viu a Maura? Perguntei para um-alguém que sem responder, permanecia rígido e imóvel. Em qual profundidade escondera seus afetos? Era necessária uma árdua escavação na alma esgotada. Lembrei-me da cisterna da casa da Carmelita, que abastecia a vizinhança. Havia água, mas era preciso cavar. Baldes e baldes se entranhavam pela sua bocarra escura e fria. Por mais que olhássemos dentro, não se via o fundo. O poço ficava num cômodo, escondido dentro da casa. Tinha medo daquele cubículo entre a horta e o banheiro improvisado, entretanto permanecia tentando alcançar o brotar da água.
Maura; você viu a Maura? Perguntei para um-alguém que sem responder, permanecia rígido e imóvel. Em qual profundidade escondera seus afetos? Era necessária uma árdua escavação na alma esgotada. Lembrei-me da cisterna da casa da Carmelita, que abastecia a vizinhança. Havia água, mas era preciso cavar. Baldes e baldes se entranhavam pela sua bocarra escura e fria. Por mais que olhássemos dentro, não se via o fundo. O poço ficava num cômodo, escondido dentro da casa. Tinha medo daquele cubículo entre a horta e o banheiro improvisado, entretanto permanecia tentando alcançar o brotar da água.
“Viram
a Maura?”. Bem alto, gritei. A Lopes? A Cançado? A escritora!
Lentamente,
ela atendeu meu chamado e me juntou num abraço quase sufocante. Era espera. Era
encontro. Tínhamos muito em comum: ambas filhas de russos, por exemplo. Nossos
voos! Maura sempre pilotando com sua sedutora “ousadia de mulher moderna” – como
dizia seu tio chinês. Um dia levamos Natacha escondida, sua irmã pequena.
Natacha chorava de medo, riamos disso. Nossos temores eram outros. Viver. Ver.
Sonhávamos com o avião lúdico se enroscando nos fios da pequena cidade russa,
mas era preciso pausa para os pássaros migrarem para o Brasil. Preocupávamos
com isso. Com a fuga dos pássaros para outras terras.
Maura
parou diante daquela mulher rígida, suspeitamente catatônica. O nome dela?
Joana. O quadrado de Joana traçado num dia de verão. A arte é assim como a
cisterna da velha Carmelita, alcança lugares obscuros e abissais. Debaixo do
braço, arranhando e manchando a axila os jornais que colecionei. Seus contos
encharcados de suor. Dos jornais, hoje, tenho asco, a tinta que não gruda
totalmente no papel, lambuza meus dedos e as digitais se impregnam de uma cor
escura. Limpei as mãos na roupa branca. Estendi os braços e pedi-lhe para
verificar se havia resíduos no meu sovaco. Ela riu seu melhor riso. Também
tenho nojo de jornais – disse-me. Maura principiou a dançar, éramos as
bailarinas-astronautas. Rodopiávamos na imponderabilidade. O mundo girava, o
hospício girava. Maura se exaltava: “O
hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e
frios, espiam sem piscar”. Engoli suas palavras, sem definir o sabor, mas a
garganta queimava. Hospício é Deus. Mais, Maura. Mais – sussurrava entre os dentes. Por um
instante, ela exaltou-se: maldito editor, maldito taxista – onde está o que
continua de mim? Queríamos praguejar em russo, mas as palavras fluíam em
português. Sobrou o dialeto dos bares, das instâncias sigilosas, a linguagem
sensível, a linguagem de dentro, a linguagem densa, funda. Sobrou o que parece
ser: esquecimento. E o desejo transbordando o medo. E o medo transbordando desejos.
Mastiguei cada palavra, enquanto degustava uma garrafa de café produzido nos
Andes equatorianos. Demorei dias em ruminações, diante do exército de xícaras.
Coloquei
seus dois livros na estante do tempo.
__
(*) Escritora e psicóloga, nasceu
em Cataguases (MG), Brasil e vive em Lisboa. Autora de “Manhãs adiadas”
(Contos, Ed. Dobra, SP, 2012) e “Para fugir dos vivos” (Novela, Ed. Patuá, SP,
2015), dentre outros.
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