Para fechar o ano com chave de ouro, postamos neste 30 de dezembro uma resenha de Menalton Braff sobre o livro "Cartas a Cassandra", de Ely Vieitez Lisboa, editado pela Funpec.
Manifesto às mulheres
Menalton Braff
O mote
inicial do romance “Toda mulher é Cassandra...” cria uma ambigüidade que vai
funcionar como elemento condutor da narrativa, da primeira à última páginas.
Cassandra, ao mesmo tempo em que é o futuro, é veneno; é a sabedoria da vida,
mas não escapa à traição e ao sofrimento. Profetizou o terrível fim de
Agamenão, que não lhe deu ouvidos, e compartilhou com ele o final trágico.
Ely Vieitez Lisboa, que em seus contos já anunciava este vezo da cultura clássica,
da recorrência aos grandes mitos da humanidade, inaugura-se em romance com o
mesmo viés cultural. Sua tarefa, em Cartas a Cassandra, é penetrar fundo
na alma feminina, desvendar-lhe os mais abscônditos escaninhos, e o faz de
forma segura, amparada, que está, naquilo que durante milênios a humanidade
acumulou como conhecimento da mulher.
Em
Cartas a Cassandra, o leitor não vai encontrar um romance de estrutura
tradicional, em que uma célula dramática central e circundada por células
dramáticas secundárias imbricadas entre si. Sua estrutura é mais de ruptura do
que de tradição. As cartas, endereçadas a uma destinatária virtual,
sucedem-se
como peças autônomas, sem que a anterior seja a causação da posterior. As
cartas se complementam em seu conjunto, no feixe, sem a linearidade que resulta
num antes e num depois.
Tempo das
descobertas, Época da maturidade e Era da sabedoria são as três
partes em que se estrutura o romance, cada uma delas abrangendo uma fase da
vida da mulher. As partes estruturais, assim, não dizem respeito à narrativa
(Apresentação, Conflito, Clímax e Epílogo). Elas concernem à própria personagem
emissora, àquela que protagoniza ou testemunha todas as histórias. Isso é, são
as três principais fases da própria vida.
Em Tempo
das descobertas, a infância, a descoberta do sexo é feita de forma brutal,
com as meninas por pouco escapando a ciladas masculinas. Há cartas de dois tipos: algumas com
reflexões sobre a condição feminina e outras com relatos de fatos, pequenas
histórias que dão sustentação concreta às cogitações abstratas.
Época da
maturidade é fogo que consome. Não há disfarces moralizantes para o desejo
sexual, como sói acontecer na literatura de outros tempos. O sexo/amor abrasa,
tira o sono, endoidece tirânico. Ele é vórtice para onde fogem seres em sua
animalidade humanizada. Ele é vertigem que impedimentos morais não conseguem
amenizar. Maturidade física com os sentidos reclamando seus direitos.
Maturidade mental ainda muito próxima de um vulcão.
Finalmente a Era
da sabedoria. O corpo apaziguado ainda não emudeceu, mas já não se entrega
à voragem dos sentidos. Não é à toa que Argos é o nome do
cachorrinho presenteado por Heleno. Heleno era irmão de Cassandra e
simboliza o amor fraterno, a amizade. O amor espiritualiza-se. Argos, na
Odisséia, era o cão de Ulisses, que, muito velho, morre de alegria ao
reencontrar o amo depois de uma ausência de vinte anos.
Cartas a
Cassandra é um trabalho de garimpagem de jóias recônditas da alma humana,
de esquadrinhagem da natureza feminina.
No plano do
discurso, encontra-se a linguagem clássica e elegante da Ely, mas sobretudo uma
linguagem sóbria, como convém a uma literatura que não se entrega a modismos
fáceis, porém efêmeros.
Título: Cartas
a Cassandra – romance epistolar
Autora: Ely Vieitez Lisboa
Editora: Funpec Editora
Tem um sabor único ler romance dev escritor@s que arriscam no gênero. Obrigado 😀
ResponderExcluirTem um sabor único ler romance dev escritor@s que arriscam no gênero. Obrigado
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