sábado, 6 de janeiro de 2018

ORELHA

Esta coluna reúne apresentações de livros escritas por Menalton Braff.
Não deixe de assinar o livro de visitas         

Acabo de assinar o “Livro de visitas”, do Fabrício Carpinejar. Continua surpreendente. Agora ele é um outro no mesmo que há quatro anos conheci. Ele é o mesmo, mas é outro. A força da poesia do Fabrício está na não aceitação da lógica social e tradicionalmente aceita. Sua poesia instaura sua própria lógica na relação entre as coisas. Não uma nova lógica, mas a sua lógica, o seu modo escondido de entender o mundo. Eis o Fabrício que conheci em “As solas do Sol”, “Terno de Pássaros ao Sul”, “Biografia de uma árvore”, “Terceira sede”, “Cinco Marias”. E que reencontro em “Livro de visitas”. O mesmo.

Pois é no esforço daquele “entender o mundo” que o poeta se debate. Por isso escreve para ser, para encontrar-se, encontrando o significado das coisas. E aí está seu lado metalinguístico, usando a língua como instrumento que, deslindando os segredos da própria língua, chegue ao inusitado das significações que o mundo recém-inventado adquire. E por isso tudo, precisa ser re-definido:

Defino as frutas
pelo grito dos feirantes
(...)
A água é cega de nascença.
Ela nos batiza no escuro.
Ou mais à frente, em outro poema:

O riacho é um cavalo líquido,
a pedra é um cavalo preso.
As borboletas são flores com abelhas dentro.
(...)

E finalmente, de uma forma bastante explícita:
Afasto-me repentinamente
do idioma, enovelo os cabelos
na fuligem e nos arames.
Farto de procurar a palavra certa,
tem hora que me comunico por sinais.

O “outro”, o Fabrício que agora se revela, está na maior intensidade da busca de si mesmo dentro de um quadro familiar, com suas relações perigosas.

Falsificava a assinatura de meu pai
Nas ocorrências escolares.
Sou incapaz de dizer uma verdade
Sem desconfiar dela.

Meus ouvidos nasceram ajoelhados
Mal leio os jornais de manhã.
(...)

Em sua visão da família, por vezes irônica, outras vezes cruel, não aceita o saudosismo ingênuo, os conceitos consagrados. Ela é o espaço da formação, mas sempre um espaço conflituoso. Seu lirismo também nos revela “um eu todo retorcido”, como se auto-definiu Drummond.

O suor é o nosso vidro.
No primeiro enterro,
esperei que a pessoa degelasse.
Meu tio parecia arrumado a um comício,
com lenço no pescoço e o capuz da barba.
Rente ao caixão, desenhei
com o bafo meu nome na janela.
Meu nome partiu naquele trem.
O fundo da terra me conhece.

O desconforto da vida já começa na “estufa dos carinhos maternos”, que Raul Pompéia qualificou de hipócrita. É o que se depreende do poema seguinte:

Não fui o primogênito
para ser um segundo pai.
Não fui o caçula
para tomar as dores da mãe.
Sou o filho incerto, do meio
e do canto da mesa.


Mas não é só no plano do conteúdo que o Fabrício revela-se um outro. Pais, tios, primos e irmãos, além da forte presença da esposa, envolta num erotismo contido, ou de boa medida, seguindo a delicadeza de sua visão, dão a este livro, ao lado das definições inusitadas com que o poeta atinge o coração do mundo, sua matéria principal. Versos e estrofes, agora, pulsam numa liberdade maior, provavelmente como conseqüência da própria matéria variada de que se vai tecendo esta coletânea.

E ainda no plano da expressão, o ritmo natural, de pura oralidade que, se já existia em suas outras obras, torna-se mais intenso ainda neste Livro de visitas. Em cada página uma surpresa, um encontro inesperado, uma invenção insólita, a combinação de palavras que o leitor jamais imaginara. Pois apesar da carga de estranhamento, sua leitura flui prazerosa com muita facilidade no dorso de seu ritmo natural.

Menalton Braff

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças