terça-feira, 1 de maio de 2018

TRABALHO ACADÊMICO ANALISA "JANELA ABERTA"

MENALTON BRAFF PARA JOVENS1
(Alvaro Santos Simões Junior)

Três narrativas juvenis?

Parece evidente que o tratamento editorial conferido a um texto interfere na leitura que dele se faz. No caso da literatura infanto--juvenil, formatos, capas, ilustrações, fontes e diagramação predis-
põem a determinados tipos de expectativas por parte do leitor. Da obra de Menalton Braff, quatro títulos foram editados de modo a atrair o público infanto-juvenil e, principalmente, identificar essas
publicações como pertencentes à modalidade. Para as crianças, destinou-se a breve mas encantadora narrativa intitulada Gambito. Para os adolescentes ou jovens, propôs-se a leitura de A esperança por um fio, Como peixe no aquário e Antes da meia-noite.

Menalton Braff nasceu em Taquara (RS) em 1938, passou a adolescência e a juventude em Porto Alegre, mas se viu obrigado a deixar a capital gaúcha em 1965 para pôr-se fora do alcance da
repressão da ditadura militar instaurada no ano anterior. Viveu depois em São Paulo, onde se formou em Letras, tornou-se professor de literatura e fez a sua estreia literária com um romance e um livro de contos em 1984, quando já contava 46 anos.2 Em 2000, recebeu o prestigioso prêmio Jabuti por À sombra do cipreste, livro de contos publicado no ano anterior.

O que se pretende examinar aqui é a hipótese de que Janela aberta, primeiro romance de Braff, que o assinou com o pseudônimo de Salvador dos Passos (nome do seu bisavô), pode ser considerado, a despeito da capa circunspecta e do tratamento gráfico convencional, uma narrativa juvenil. Não obstante o que se disse logo de início, as análises aqui desenvolvidas partem do princípio de que a caracterização de um texto deve ser essencialmente determinada por seu
conteúdo intrínseco.

Reconhecidas pelo próprio autor como obras juvenis, o qual assim as apresenta em seu site (www.menalton.com.br), Como peixe no aquário (2004), A esperança por um fio (2003) e Antes da meia--noite (2007) constituem o gabarito pelo qual se examina Janela aberta.

Tudo termina bem 

Ao contrário do que ocorre nos sombrios contos e romances para adultos, 3 nas narrativas juvenis de Menalton Braff o final é sempre (mais ou menos) feliz.

Em Como peixe no aquário, Rita de Cássia, que era balconista de uma papelaria, apropria-se do dinheiro da venda de três cartuchos de tinta para impressora com a expectativa de poder logo devolver a importância ao caixa. No entanto, obrigada a arcar com incontornáveis despesas da família, passa quase cinco meses atormentada por remorsos e pelo medo de ser acusada do roubo até poder, enfim, repor o dinheiro e superar definitivamente o problema.

A vida de Artur, o protagonista de A esperança por um fio, muda repentinamente de maneira radical. Seu pai, arrimo de família, sofre um aneurisma e permanece em coma por cerca de oito meses.
Por isso, sem outra fonte de renda que não fossem as comissões do pai, que era representante comercial de três empresas, Artur e a mãe deixam São Paulo e mudam-se para o interior, onde podiam contar com o amparo de Leonardo, tio de Artur. O rapaz
perde o computador, a casa em que vivia, os amigos e, por escolha própria, a escola e os projetos de curso universitário. Embora profundo, seu sofrimento foi relativamente breve, pois o pai recupera-se de modo pleno após uma cirurgia decisiva.

Os problemas de Aline em Antes da meia-noite não são tão graves. Tratava-se de controlar a compulsão por conversas com amigos virtuais em chats e no MSN para evitar nova reprovação escolar. Assim como, segundo Machado de Assis, a personagem Juliana salva o interesse do romance O primo Basílio (1878), de Eça de Queiroz, os assaltantes da agência em que trabalha a mãe de Aline
emprestam à narrativa de Braff a tensão e o interesse que lhe faltam. Findo o assalto e libertada a mãe, que ficara refém por algumas horas, Aline pôde fazer para si mesma promessas de dedicar-se mais seriamente aos estudos e até mesmo entender-se com o namorado da mãe. Entretanto, reforçando ainda mais o caráter secundário do episódio do assalto, a moça controla sua obsessão pela
internet utilizando... a internet. No chat ela conhece um certo Fabrício, com quem mantém conversas proveitosas sobre... literatura. Fazendo um uso nobre da tecnologia, Aline descobre que antes perdia muito tempo com bobagens. Comprova-se assim o velho lema da homeopatia: similia similibus curantur.

Em Janela aberta, a família de Raimundo passa por profunda crise em decorrência do desemprego do chefe de família. Edu, o filho mais novo, é obrigado a trabalhar aos doze anos. Laura, a filha mais velha, que já era operária, sente-se coagida pelo pai a aceitar a corte do vizinho Altino para casar-se com ele. Após áspera discussão com o pai, Laura é por ele espancada e jura vingança. O modo que escolhe para vingar-se é especialmente irônico: sair furtivamente de casa à noite, pulando a janela, para entregar-se justamente a Altino, certa de que o escândalo viria à tona. Como Laura calculara, Raimundo e Iara, sua mãe, sentem profundamente o golpe quando sabem dos vizinhos a respeito das suas fugas noturnas. Quando tudo parecia indicar o completo esfacelamento da família, Raimundo volta a empregar-se e Laura aceita finalmente casar-se com o amante, recebendo então a bênção dos pais.

As experiências das personagens são fortemente condicionadas pelas circunstâncias históricas e sociais em Janela aberta e Como peixe no aquário. Raimundo e seus filhos são afetados pelo desemprego estrutural determinado pela automação industrial. Já Rita de Cássia sofre os efeitos da inviabilidade econômica das pequenas propriedades rurais: o sítio dos pais não podia assegurar o seu sustento e o de seus irmãos. Tentar a sorte na cidade era a única alternativa de sobrevivência viável. Embora a vida de Artur em A esperança por um fio seja, a princípio, alterada por um acontecimento fortuito – a doença do pai –, sua breve experiência de provedor do lar revela o contexto socioeconômico contemporâneo. Como se nota, essas narrativas de Menalton Braff apresentam uma característica importante do Realismo moderno sério, que representa o homem “engastado numa realidade político-socioeconômica de conjunto concreta e em constante evolução” (Auerbach, 1998,
p.414).

Soluções formais

Como peixe no aquário divide-se em quatro partes e um epílogo. Cada parte, por sua vez, divide-se por número variável de capítulos numerados. A primeira parte apresenta dezesseis capítulos, a
segunda, oito, a terceira, dez e a quarta, apenas três. O epílogo intitulado “Enfim” não contém subdivisões. No interior dos capítulos, transcrevem-se anotações que Rita de Cássia faz em seu diário. Essas manifestações de subjetividade da protagonista muitas vezes apenas repetem o que já fora revelado pelo narrador onisciente.

A estrutura de A esperança por um fio é comparativamente mais simples, pois a narrativa divide-se em 24 capítulos. Entretanto, o narrador-protagonista conta a sua  história conservando os verbos no presente. Dessa forma, a morte ou a recuperação do pai de Artur mantêm-se até o final como desenlaces possíveis e ignorados pelo narrador, deixando a vida da personagem em estado de suspensão. O livro apresenta-se fartamente ilustrado e os capítulos são sempre precedidos por uma mesma vinheta que representa a fotografia de um homem acompanhado de um menino.

Antes da meia-noite apresenta-se convencionalmente em dezenove capítulos e a narração repete a fórmula de A esperança por um fio, mas com menor eficácia, pois o desconhecimento da verdadeira
identidade do amigo virtual de Aline não tem o mesmo peso da indefinição do destino do pai de Artur.

Em Janela aberta, Braff optou por um tradicional narrador onisciente, mas dividiu a narrativa em duas partes divididas por inúmeros fragmentos não numerados. Nesse romance, emprega-se uma técnica muito interessante, que é a não observância da cronologia dos fatos narrados, de modo que o relato de fatos anteriores fica intercalado à narração de fatos mais recentes. Dado o caráter sistemático e intrincado dessa intercalação, não se pode comparar essa técnica com o emprego tradicional do flashback. No final da primeira parte (Passos, 1984, p.60), por exemplo, intercala-se o relato da discussão de Laura com o ex-namorado Dario com o do espancamento da jovem por Raimundo, sugerindo a elucidação do estado de espírito e das motivações profundas da personagem
quando afronta o pai.

Com menor brilho, Braff procurou reeditar a técnica em Antes da meia-noite. De todo modo, a referida intercalação impõe uma leitura mais atenta da narrativa para que se reordenem cronolo-
gicamente os episódios. As ações e reações das personagens vão sendo iluminadas pela recuperação de episódios anteriores. Das quatro narrativas, Antes da meia-noite foi a que recebeu um tratamento gráfico mais ousado, com títulos e palavras, expressões ou frases importantes destacados com a utilização da cor vermelha, que também é empregada em detalhes das várias ilustrações. Seis páginas são totalmente vermelhas: nelas as letras são impressas na cor branca. Inserem-se também alguns quadros de fundo rosa que procuram imitar telas de computador.

Sentimento de orfandade

Nas quatro narrativas aqui estudadas, os jovens ou adolescentes padecem de um acentuado sentimento de abandono ou orfandade e são expostos precocemente aos graves desafios da vida adulta. Rita de Cássia mora longe dos pais, com os quais se comunica apenas por cartas. Deles não recebe o conforto e o amparo de que precisa, mas reiterados pedidos de auxílio e queixas sobre as dificuldades da vida. Artur perde repentinamente a companhia do pai, seu maior amigo, e passa a viver somente com a mãe, com quem, a princípio, não se entende. Aline vive apenas com a mãe, que se divorciara de seu pai. D. Ivone, a mãe, quis estudar e conquistar autonomia, mas o marido não aceitou que sua mulher ganhasse mais. Laura e Edu descobrem que o pai é incapaz de garantir o sustento da família e que a mãe não tem forças para contrariar ou questionar o pai.

Os melhores retratos da adolescência desamparada encontram--se justamente em Janela aberta. Laura é subitamente atirada à vida adulta:

Bela idade, catorze anos! Laura não sabia disso quando saiu de casa naquela manhã. Tinha então catorze anos. Saiu cabisbaixa e pela primeira vez queimou sem medo os riscos da amarelinha. Usava a saia azul-marinho do uniforme, já meio curta, deixando à mostra os joelhos ossudos e um princípio de coxas descarnadas. Primeiro dia de serviço, desamparo maior que primeiro dia de aula. O pai mal empregado, ganhando pouco mais que o salário-mínimo, a vida muito apertada, o jeito era trabalhar. [...] Mesmo de posse da Carteira Profissional, ela ainda achava que poderia prolongar sua infância. O serviço de casa, a escola, os cuidados com o Edu, a brincadeira na rua. A verdade somente a penetrou, de forma aguda e até o fundo, quando baixou a alavanca e ouviu o tinir do relógio-ponto.
Fim. Acabaram-se as correrias, terminaram-se as brincadeiras, adeus sonho de continuar estudando. (Passos, 1984, p.15)

A menina-moça fica irremediavelmente exposta a um mundo que não prima pela delicadeza: “...o aperto no corredor do ônibus, o bodum inevitável e o esfregar-se indecente dos que, mesmo na-
quele aperto, conseguiam alguma vantagem” (ibidem, p.16). Cada jornada de trabalho era para ela um verdadeiro suplício: “Voltava para casa com a sensação de ter sido violada, de estar imunda”
(ibidem, p.44).

Edu, o irmão de Laura, começa a trabalhar em uma indústria com apenas doze anos, o que o deixa à mercê dos maltratos de um colega de trabalho mais velho e de um ambiente insalubre: “Era um galpão escuro, coberto por uma poeira preta e fina” (ibidem, p.73). O menino suporta tudo porque sente um grande peso sobre os ombros: “Chegou a pensar em pedir a conta. A lembrança do pai
saindo de casa todos os dias com aquela cara de desânimo, batendo perna para cima e para baixo, sem nada conseguir, dava-lhe um sentido incômodo de responsabilidade. Aguentava” (ibidem, p.74).

Quando a vingança de Laura abala a família, o sentimento de desamparo em Edu torna-se ainda mais forte: “Os laços, que lhe haviam sempre parecido tão firmes, e que formavam aquela unidade dentro da qual se sentia seguro, esfarelavam-se” (ibidem, p.89).

Rebeldes com ou sem causa

Com exceção de Rita de Cássia, que carrega a sua cruz sem protestar, os jovens e adolescentes de Menalton Braff têm sempre uma queixa ou uma acusação na ponta da língua. Artur, por exemplo,
“odeia” a aparente insensibilidade da mãe e não compreende o seu comportamento, como confessa à adorável prima Marília: “...não me entra na cabeça que uma esposa veja o marido assim, morre não
morre, e continue fazendo tudo como se ele tivesse saído pra visitar um cliente” (Braff, 2003, p.27). Obrigado pelas circunstâncias a trabalhar, planeja atingir a mãe com uma firme recusa de continuar
os estudos: “Tenho de trabalhar? [...] Trabalho, sim. Mas o meu futuro acabou aqui. Vou dizer tudo isso e, dependendo do que ela disser, digo ainda muito mais. Acabou escola, acabou futebol, ami-
zades que mal iniciavam. Vou ser operário do meu tiozinho querido” (ibidem, p.86).

Embora sua cota de sacrifício fosse desprezível, Aline opõe-se à tentativa da mãe de encontrar um novo companheiro. Cria situações embaraçosas para Sérgio, o namorado da mãe, protesta contra as “longas” ausências dela e chega a chantageá-la: “...a senhora não implica mais com a internet e eu largo de implicar com o Sérgio” (ibidem, p.51).

Entretanto, quem melhor encarna a rebeldia juvenil contra o mundo dos adultos é Laura, que mantém áspera discussão com o pai pouco depois de ser ameaçada de espancamento pelo ex-namorado Dario, que a deixara sem explicações e voltara “para buscá-la” dois anos depois. Quando o pai, preocupado com o futuro dela, tenta convencê-la de que Altino, o vizinho, era o melhor mari-
do com quem podia sonhar, Laura reage com uma grande ofensa:
“Pois se o senhor tá tão interessado assim no Altino, por que não vai lá dar o rabo pra ele?” (Passos, 1984, p.67).

Duramente espancada pelo pai e possivelmente salva da morte por intervenção dos vizinhos, já que a mãe assistia a tudo impotente, Laura jura vingança: “Amanhã vocês dois vão ver só – pensou – ninguém bate injustamente na Laura sem sofrer as consequências” (ibidem, p.14). Ao entregar-se a Altino clandestinamente, procura atingir o pai naquilo que lhe era mais caro: a honorabilidade.

Como Laura friamente planejara, o pai sofre muito com sua atitude e mais abatido fica quando, ao cobrar satisfações de Altino, vem a saber dele que Laura já não era virgem na noite em que o
procurou pela primeira vez:

As posições praticamente invertidas. Apanhado em falta querendo empurrar mercadoria falsificada. Não sabia disso. Nunca pudera imaginar. Então o caso já ficava diferente. Era o máximo da vergonha, aquela última revelação. Nem ódio mais conseguiria arrancar de seu vazio. De tal forma arrasado ficou o pai, que Laura se condoeu. Culpa e vitória misturadas. (ibidem, p.107)

Despreparados para a vida

Arrimos de família, rebeldes ou petulantes, os jovens e adolescentes de Menalton Braff revelam-se, entretanto, despreparados para enfrentar autonomamente os desafios da vida adulta. Rita de Cássia, por exemplo, é interpelada por um desconhecido quando estava no ponto de ônibus ao final de uma tarde. Aceita a carona que lhe é oferecida, satisfeita com a possibilidade de voltar para casa no conforto de um automóvel. Quem a alerta para os riscos a que se expunha com a atitude é Elaine, sua amiga: “– Você é bem pastel mesmo Rita. Um Norberto abre a porta do carro e você vai entrando, é isso?” (Braff, 2004, p.102). Depois de receber essa admoestação, Rita de Cássia escapa por pouco de sofrer um estupro. Norberto era, na verdade, Walter Garcia da Silva, um homem casado que se especializara em perseguir jovenzinhas.

A imaturidade de Artur fica evidente em sua decisão de deixar a escola simplesmente para mostrar-se insatisfeito com a necessidade de trabalhar. Quem o chama à razão é Tadeu, um colega de trabalho
que fora aprovado em vestibular da Unesp de Franca:

– Você é um bosta, Artur. Você acha que eu comecei a trabalhar quando? Na sétima série já fui estudar à noite pra ajudar em casa. E passei sem Cursinho, cara. Sabe por quê? Botei na minha cabeça
que pra melhorar de vida ou virava bandido ou me formava. Como não tenho vocação nenhuma pra ser bandido, resolvi me formar. (idem, 2003, p.119)

Aline desfila em trajes sumários diante do namorado da mãe para constrangê-lo. Repreendida pouco depois pela mãe, procura retorquir de forma provocativa: “...aqui é a minha casa e eu ando do jeito que eu quiser”. A mãe reage de modo a não deixar dúvidas:

“Olhe aqui, menininha. Este apartamento é meu, e sou eu quem dita as normas por aqui” (idem, 2007, p.33).

Quando Aline marca um encontro com o namorado virtual, é a vez de sua amiga Carol alertá-la: “– Mas você é louca, Aline. Você não sabe quem é o cara, não sabe nada dele, como é que embarca
numa canoa dessa, garota?” (ibidem, p.91).

Muito imatura é também Laura, que se entrega a um homem que, a princípio, não amava, expondo-se às críticas e represálias da sociedade e a uma gravidez indesejada, apenas para vingar-se do pai.

Adultos desamparados

A despeito da ênfase na perspectiva e na experiência de jovens e adolescentes, as quatro narrativas aqui analisadas acabam por revelar as limitações, os medos e as angústias dos adultos, que estão
ainda mais intensamente expostos a um mundo ameaçador.

Em Como peixe no aquário, os pais de Rita de Cássia precisam manter o sítio em funcionamento sem o trabalho indispensável de Tadeu, o filho que ainda vivia com eles, que estava momentaneamente incapacitado para o trabalho por haver contraído erisipela. Na cidade, Eduardo, o irmão mais velho de Rita de Cássia, precisa encontrar emprego para sustentar a família e poder dispensar a irmã de colaborar com o dinheiro do aluguel.

A mãe de Artur, que parecia tão insensível para ele, procura na verdade mostrar-se forte para poupá-lo de preocupações e angústias e para dar a entender que controla a situação extremamente adversa.

O ponto alto de A esperança por um fio é o capítulo 16, em que se relata o momento em que Artur descobre os verdadeiros sentimentos da mãe, que sentia saudades do marido e temia o futuro, mas nunca se manifestava a esse respeito para não alarmar ou compungir o filho.

Em Antes da meia-noite, a mãe de Aline torna-se vítima da violência urbana, ficando sob a mira de um revólver e sofrendo agressões.

Porém, de todos os adultos, o mais desamparado, o mais incapaz de reagir às dificuldades e de administrar a própria vida é Raimundo, o pai de família de Janela aberta. Morando em uma casa
humilde, não dispõe de privacidade, pois havia, coladas à sua, outras casas que compartilhavam o mesmo terreno. Sem receber um salário digno, não consegue pagar as prestações de um aparelho de
televisão, única fonte de diversão da família, e, portanto, não pode prescindir do auxílio financeiro dos filhos. Quando fica desempregado aos 46 anos, não encontra alternativas para prover a família do estritamente necessário.

Choque de gerações

Em narrativas destinadas ao público juvenil, um tema que necessariamente se impõe é o do distanciamento entre as gerações a que pertencem pais e filhos; estes tendem a recusar os valores que
aqueles defendem. Além disso, os filhos, em processo de autoafirmação, procuram adotar comportamentos que desafiam os padrões éticos e morais recomendados ou mesmo impostos pelos pais.

Em Antes da meia-noite, D. Ivone pergunta à filha se estava namorando Gabriel, com quem trocara vários beijos em seu baile de formatura do Ensino Fundamental. A resposta foi esclarecedora: –
“Mãezinha, pelo amor de Deus, que papo mais careta! A gente só ficou naquela noite, mais nada” (Braff, 2007, p.22). Depois, quando a mãe chama a atenção de Aline para o fato de que já era
tarde para estar à frente do computador, recebe resposta um pouco menos carinhosa: “– A senhora não percebe que está ficando velha e intolerante?” (ibidem, p.28).

Se assim reagem os fartos, o que esperar da pobre e desamparada Laura? Quando falta ao trabalho por estar incomodada com a menarca, Raimundo recrimina-a: “eu trabalhei sete anos numa firma
só e não faltei nem no dia de registrar o teu irmão.” O comentário foi “curto e grosso”: “E de que adiantou?” (Passos, 1984, p.16).

Deve-se convir que seria difícil para o operário encontrar uma boa resposta para a inoportuna pergunta formulada pela filha. Quando o assunto era o sucesso de pessoas desonestas ou inescrupulosas, “Raimundo argumentava que o melhor de tudo é ter a cabeça erguida. E o sapato furado, completava Laura” (ibidem, p.18).

A força do amor

Do que ficou exposto, pode-se concluir que Menalton Braff procura em suas narrativas juvenis denunciar a falta de compreensão mútua entre pais e filhos. Estes, por egocentrismo, imaturidade
e/ou desinformação, não têm consciência plena dos graves problemas e responsabilidades associados à vida adulta.4 Aqueles mantêm os filhos na ignorância de certos fatos para poupá-los ou por não reconhecê-los como interlocutores, embora se vejam obrigados pelas circunstâncias a solicitar deles uma cooperação financeira vital.

Apesar das rusgas mais ou menos intensas e das sérias ameaças que pairam sobre as famílias, pais e filhos acabam por entender-se, pois há uma força poderosa a uni-los: o amor.

Em A esperança por um fio, Artur, depois que “descobre” os verdadeiros sentimentos da mãe, trata-a com uma grande amiga e estabelece com ela relação de cumplicidade.5

Aline e a mãe em Antes da meia-noite terminam sempre suas discussões abraçadas e chorando. Sérgio, o namorado, passa a ser aceito por Aline quando o assalto proporciona a ele a oportunidade de mostrar a sinceridade de seu sentimento por D. Ivone. A mãe, aliás, tranquiliza definitivamente a filha egocêntrica quando diz: “– Você acha que existe alguma força no mundo capaz de me separar de você?” (Braff, 2007, p.108).

Reza o provérbio que, “em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”. Na casa de Raimundo, com efeito, a dura vida de todos faz prenunciar a completa dissolução da família. Mas Janela aberta tem um final feliz porque Laura, após sentir-se devidamente vingada, procura um pouco canhestramente reconciliar-se com os pais quando lhes solicita autorização para casar-se com Altino. De sua parte, Raimundo e Iara sentem-se felizes por poderem restabelecer um bom relacionamento com a filha, que, afinal, amavam.

Narrativas up to date

Menalton Braff procura em suas narrativas abordar problemas atuais como o abuso do álcool e o consumo desenfreado de entorpecentes entre os jovens em Como peixe no aquário e como a
compulsão por internet e a violência urbana em Antes da meia-noite. Nesta narrativa, aliás, Braff não resiste a certo didatismo e transmite “boas” mensagens aos seus leitores presumivelmente jovens.
Aline confessa o que aprendia em suas conversas com Fabrício (pseudônimo de Gabriel), seu amigo virtual: “Eu estava, de fato, descobrindo que a poesia é um modo diferente de ver o mundo, de
ver beleza onde não havia nada” (ibidem, p.55). Convenientemente seu rico dinheirinho. Pois eu pago tudo. Nem que tenha de trabalhar pelo resto da minha vida, eu pago tudo, ouviu, tia?” (Braff, 2003, p.105). Na ocasião, a mãe de Artur interveio para que ele parasse de falar, mas, depois, confessou:
“...não acho que você estivesse errado, não. O que você fez foi exatamente o que eu pensava que você deveria ter feito. Eles calaram a boca” (ibidem, p.106). esclarecida por Fabrício, Aline já achava o chat chato: “...e o papo, mãe do céu, não sei como foi que por tanto tempo fez a minha cabeça” (ibidem, p.74-5). Em uma página totalmente vermelha, Aline reflete sobre a sexualidade:

...a ideia do sexo é sempre muito excitante, uma coisa que parece correr por dentro das veias da gente, mas que é preciso saber esperar a hora certa [sic]. Conheço algumas meninas para quem o sexo não é mais mistério. Uma delas engravidou e abandonou a escola. Outra fez um aborto malfeito e quase morreu. Eu, hein!, com tanta pílula e camisinha por aí dando sopa, é ser muito pamonha. (ibidem, p.93)

Como se nota, o narrador-protagonista fica nesses fragmentos reduzido à condição de porta-voz do autor, ansioso por transmitir conselhos úteis e ideias apaziguadoras e edificantes aos seus incautos leitores.

Das quatro obras aqui estudadas, Janela aberta pode ser considerada uma narrativa de caráter histórico, pois a crise da família de Raimundo ocorre no final do período conhecido como “milagre
econômico” (1968-1973). Embora alguns dos problemas abordados permaneçam atuais – como o desemprego estrutural, o preconceito contra os trabalhadores de meia-idade e a exploração do proletariado pelo capital industrial –, outros, como a interdição do sexo antes do casamento, perderam relevância.

Janela aberta: primeira narrativa juvenil 

Assim como as três outras narrativas aqui estudadas, Janela aberta, apesar dos graves problemas enfrentados pela família de Raimundo, tem um final feliz, deixando à frente de Edu6 e Laura um futuro a ser construído. Das quatro narrativas, é a mais elaborada do ponto de vista formal, embora não seja acompanhada de ilustrações ou de extravagâncias tipográficas como as de Antes da meia-noite. Em Janela aberta, representa-se o precoce confronto de jovens com o mundo adulto, o que gera neles um sentimento de desamparo e alimenta suas atitudes de rebeldia, as quais também resultam, em larga medida, de sua imaturidade ou de seu desconhecimento do mundo. Os protagonistas de Antes da meia-noite, A esperança por um fio e Como peixe no aquário são imaturos e/ou rebeldes, mas não chegam ao grau de enfrentamento da autoridade paterna atingido por Laura em Janela aberta. Neste romance, consequentemente, revela-se ainda mais intensamente o choque de gerações entre pais e filhos. Como nas outras narrativas, os problemas resolvem-se em Janela aberta pela ação do amor, que une indissoluvelmente pais e filhos. Com seu caráter histórico, Janela aberta não manifesta tão intensamente a tendência das narrativas de Menalton Braff para a abordagem de problemas atuais. No entanto, ao representar as experiências das personagens fortemente condicionadas pelas circunstâncias históricas e sociais, possibilita um conhecimento mais amplo do mundo e vai muito além da previsível tematização das angústias e conflitos de adolescentes e jovens, da transmissão de boas mensagens e da criação de personagens que favoreçam a identificação projetiva por parte dos presuntivos leitores. Aline, Rita de Cássia e Artur podem ser uma representação fidedigna dos adolescentes atuais, mas Laura e Edu são personagens muito mais vivas e mais convincentes do ponto de vista literário.

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NOTAS:

1 Publicou-se primeira versão deste ensaio na coletânea Narrativas juvenis: Geração 2000 (São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012), organizada por Alice Áurea Penteado Martha, Vera Teixeira de Aguiar e João Luís Ceccantini, a quem se dedica esta nova edição.

2 Braff vive hoje em Serrana, cidade próxima a Ribeirão Preto.

3 A esse respeito, pode-se mencionar os romances Que enchente me carrega
(2000), Castelos de papel (2002), Na teia do sol (2004) e os contos de A coleira
no pescoço (2006).

4 A esse respeito, é bastante eloquente um trecho de Janela aberta em que o narrador ressalta o estado de espírito de Raimundo quando recebe o insulto de Laura. De manhã, o operário fora ao banco para deixar a guia para saque do FGTS. Suas dúvidas e desconfianças diante dos funcionários lembram as
reações de Fabiano diante do patrão ou das autoridades policiais em Vidas secas, de Graciliano Ramos. Ressaltando a falta de comunicação entre as personagens, observa o narrador: “Se Laura soubesse o que seu pai sofrera desde a manhã, bem de manhã, teria agido de forma diferente. Se ela pudesse imaginar a sensação de desvalimento que Raimundo tivera ao entrar no banco, então
estaria dormindo, agora, sem maiores preocupações” (Passos, 1984, p.60).

5 Certa vez, tia Rute opinou que julgava “dinheiro jogado fora” manter o pai de Artur vivo com aparelhos “sem ter esperança nenhuma”. Artur respondeu agressivamente: “A senhora não tem [esperança] porque a senhora só pensa no seu rico dinheirinho. Pois eu pago tudo. Nem que tenha de trabalhar pelo resto da minha vida, eu pago tudo, ouviu, tia?” (Braff, 2003, p.105). Na ocasião, a
mãe de Artur interveio para que ele parasse de falar, mas, depois, confessou: “...não acho que você estivesse errado, não. O que você fez foi exatamente o que eu pensava que você deveria ter feito. Eles calaram a boca” (ibidem, p.106).

6 Edu assemelha-se a Alberto, de Castelos de papel, no início de sua irresistível ascensão profissional e financeira. Ambos estabelecem lutas ásperas com colegas de trabalho e descobrem o sedutor apelo dos bens de consumo.
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SIMÕES JUNIOR, AS. Menalton Braff para jovens. In: Estudos de literatura e imprensa [online].
São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, pp. 169-183. ISBN 978-85-68334-
47-8. Available from SciELO Books .

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