Século XXI: os desdobramentos contemporâneos de Menalton Braff
O perceptivismo imediatista de Adelino é revisto pela prosa contemporânea de Menalton Braff ¹ que, em Bolero de Ravel (2010), elabora uma relação como que negativa com o elemento visual, mediada por um narrador mal ajustado á vida e para quem o contato com o mundo exterior, simbolizado pela luz, constitui o maior dos males.
Seu enredo, como de praxe em narrativas impressionistas, pode ser sintetizado em poucas palavras: Adriano, homem de 35 anos sustentado pela família, vê sua vida entrar em crise ao perder seus pais em um acidente de carro.
Sua irmã, Laura, advogada como o pai e orgulho da casa, demanda metade de sua herança, ou, ao menos, que o irmão trabalhe e arque com suas próprias despesas. O resultado é desastroso, pois Adriano não consegue adaptar-se ao trabalho, horrorizado pela vida fora do quarto:
Abro os olhos como se fosse começar a viver outra vez. Abro com a vaga esperança de que ainda não saí de um sonho mal, por isso abro apenas uma fresta, com medo de que haja luz no quarto, e que a luz me fira como vem acontecendo ultimamente toda vez que abro os olhos. meu corpo quente muda de posição, protegendo-me, depois de ter visto a mancha clara do dia que nasce molhado nas trinchas da veneziana. (BRAFF, 2010, P. 19)
Nesta atmosfera de meia luz, o tempo torna-se relativo, submergindo-se em meio aos pensamentos do narrador: "A claridade escassa pode ser do dia que nasce. Ou morre. Vejo na parede o quadrilátero da janela com vestígios de uma luz azulada, mas que janela é esta que não vejo e não significo?" (idem,
p. 27) Tal fuga do mundo e do fluxo temporal decorre de um processo de ressignificação das sensações, que, de maneira quase bergsoniana, constata o sofrimento de Adriano no tempo que se esvai, "pois é nele que transcorre. Sofrimento existe na duração; a sucessão dos instantes" (idem, p. 39) O confronto com o mundo passa por um drama existencial em crescendo, atento unicamente ao fluir das sensações, comprometidas pela ausência de contato interpessoal: "A medida que vou apagando as luzes da casa, vou mergulhando sem remédio em uma nuvem de tristeza. Sou o último a me deitar e isso está muito perto de significar que sou o único" (idem, p. 58)
p. 27) Tal fuga do mundo e do fluxo temporal decorre de um processo de ressignificação das sensações, que, de maneira quase bergsoniana, constata o sofrimento de Adriano no tempo que se esvai, "pois é nele que transcorre. Sofrimento existe na duração; a sucessão dos instantes" (idem, p. 39) O confronto com o mundo passa por um drama existencial em crescendo, atento unicamente ao fluir das sensações, comprometidas pela ausência de contato interpessoal: "A medida que vou apagando as luzes da casa, vou mergulhando sem remédio em uma nuvem de tristeza. Sou o último a me deitar e isso está muito perto de significar que sou o único" (idem, p. 58)
Ademais, a aversão do narrador à vida comum – à luz e às cores – estende-se também aos sons. Tal qual numa repetição do Bolero de Maurice Ravel², que dá ensejo ao título da obra, Adriano revive o passado cíclica e obsessivamente, temeroso de deparar-se com o presente: "Não quero me sentir responsável por ato nenhum. Então me anulo tanto quanto posso. Passo em silêncio pelo corredor, porque o silêncio está mais próximo do nada onde o ruído vai dar existência aos seres." (idem, p. 25) Trata-se, pois, de um lento "processo de esfacelamento da personagem" (COSTA E SILVA, 2015, p. 156, grifos da autora), cujo eixo que liga a reflexão temporal ao nada existencial do narrador é de origem edípica, decorrendo do carinho superprotetor da mãe. Iara, pianista que, em vida, envolve o filho numa redoma de afeto e ajuda-o a isolar-se do mundo ( enquanto "yára" ou "senhora" de sua vida), tocando-lhe músicas ou dando-lhe CDs para que se sinta bem, é aquela que rouba as cores e os sentidos do mundo:
Às vezes, depois de uma longa escuta, eu abria os olhos, frestas mínimas, e via minha mãe de costas, mas era uma sensação holística que me atingia. Eu a via completa, transvista. [...] Ao começarem a dedilhar as teclas do piano, seus dedos pareciam roubar o que lhe restava de cor no rosto. [...] O primeiro CD que ela me deu foi o Bolero, de Ravel, porque eu sempre pedia a ela que tocasse o arranjo para piano, de que nós dois gostávamos. Aquele motivo repetido obsessivamente, a frase que permanecia quando parecia ter sumido, o modo como aos poucos tudo crescia, tomava conta de meus sentidos até a apoteose final. Tudo isso era o modo como eu saía do tempo, me ausentava do mundo para ter existência apenas na música (idem, p. 73-74)
Desta forma, a composição do romance efetua-se de maneira imbricada à peça indicada por Ravel, "regida pela gradação progressiva que vai da menor à maior intensidade dramática, da menor à maior quantidade de instrumentos, da menor à maior estridência dos sons à qual se segue um abrupto silêncio." (FRANCO JR, 2013, p. 189) A alternância de eventos passados e presentes, sob duas frentes distintas – a saber, a repetição edípica da música de Ravel, entendida enquanto fuga ao fluxo do tempo pelo recolhimento ao afeto materno³, e a aversão de Adriano ao mundo exterior, ou a tudo que não diga respeito à mãe – incide numa mesma expectativa frustrada de reabilitação social do protagonista, que é adiada capítulo a capítulo, tornando previsível ao leitor o movimento de sua decadência, rumo à loucura. Neste sentido, Bolero de Ravel perfaz a caracterização de uma personagem típica de uma obra impressionista:
Personagens da ficção impressionista encontram-se muitas vezes isolados de suas famílias, amigos e da sociedade em geral, porque cada um vê seu cantinho do mundo de maneira bastante diversa. Cada um percebe um vasto e oculto mundo como imediatamente inacessível, através de muitas falhas de percepção. O isolacionismo militante leva o mais das vezes para um individualismo farisaico, e, não obstante, o desejo pela comunicação humana, a partir de múltiplas perspectivas, acarreta a confusão e a perda da individualidade. E isso se torna um tema central na ficção impressionista (STOWELL, 1980, p. 29-29)
De qualquer forma, esse "efeito criado pelo romance, essa expectativa implica o leitor, obrigando-o a reconhecer-se parte integrante do mundo recusado por Adriano." (FRANCO JR, 2013, p. 195) Com isso, a leitura de Bolero de Ravel parece dividir duas tendências de leitura: uma imediatista de negação das razões de Adriano, em favor de Laura: e , de maneira inversa, outra de distanciamento da visão "exterior" aos dramas existenciais de Adriano, em favor da simples cooptação. Em todo o caso, estão nítidos os traços de um típico "unreliable narrator" (BOOTH, 1968, p. 158), que deixa entrever marcas da fraqueza de seus argumentos, muito embora deixe marcado o valor humano de seu drama pessoal.
Em suma, apesar de uma mudança de "tom" perante um romance como Moça com chapéu de palha - que deixa de incidir sobre o material tátil e sobre a referência direta ao meio da pintura para adentrar o impressionismo literário na "atomização do mundo" que sua visão mais íntima pressupõe (KRONEGGER, 1973, p. 39) – Bolero de Ravel constitui vedadeiro avanço, dentro do conjunto da obra de Menalton Braff, rumo a uma reavaliação madura da herança do impressionismo literário no Brasil.
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1 - Outros exemplos de experimentações impressionistas em sua obra, não comentados no corpo do capítulo, são Na Teia do Sol e, sobretudo, Moça com chapéu de palha. Aliás, parece escusado assinalar o claro intertexto do título do romance com o quadro de Renoir, "Jeune fille au chapeau de paille" (que por sua vez dialoga com o quadro homônimo de Rubens). Para uma maior discussão acerca da presença do impressionismo em Braff, cf. Costa e Silva (2015, p. 74-76) e Beleboni (2007).
2- Parece escusado lembrar que Maurice Ravel é considerado por muitos um compositor impressionista, herdeiro da música de Claude Debussy. Cf Moser (1952); Jarocinski (1971); Fleury (1996).
3- O desejo edípico do narrador para com sua mãe estende-se, aliás, à irmã odiada/ amada laura, a quem surpreende certa vez saindo do chuveiro e dedica, desde então, um respeito dúbio ( "Não acredito que haja maior perfeição do que o corpo desde então gravado na minha memória" (BRAFF, 2010 p. 90)).
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