sexta-feira, 14 de setembro de 2018

CONTOS CORRENTES

Este conto foi publicado originalmente na Antologia Solidária Barretos.


Um Mensageiro Contou

(Glaucia Chiarelli)

A fantasia não pode ir embora do universo infinito de cada ser como se fosse moda, tendência praticada em uma fase da vida, e que, depois, com o tempo, se esvai. Como se fosse mais um costume de estação.

Naqueles tempos, já meio distantes do agora, em que eu praticava uma feitiçaria chamada brincadeira, me lembro que o mundo era vasto e habitado pelos mais diferentes seres. Tinha monstros e amigos e rotinas que precisavam de mais horas do que tem um dia inteiro. Os meses eram infinitos e os anos lembravam uma era. Todos os seres eram deuses e tinham o poder de criar terras, moradas e esconderijos. Os cantos eram entoados em conjunto e transformavam o mundo, o povo e os próprios cantadores.

Eu ainda me recordo.

Certo dia, naquelas horas de fazer nada, naqueles momentos em que mente e coração se abrem num lampejo e se ajuntam em mente e espírito, recebi a visita dos mensageiros. Vindos do Leste, queriam água e pão, e ouvidos e alma leve.


Contaram sobre as estradas e morros, e a grama que nasce no alto dos morros, e as flores que nascem em meio à grama no alto dos morros, cortados por aquelas estradas, que não começam e nem acabam no pé de nenhum morro. A chuva e o sol, que ora se alternando, ora se combinando, davam dinâmica aos movimentos e se faziam motivos para novas amizades. E sobre o vento, o mesmo que levanta os cabelos das pessoas de lá ou daqui, que faz os braços se abrirem, que dá a sensação de que tudo é a mesma coisa. E é.

Eles chegaram com esse vento. O mesmo vento que conhece todas as coisas. No silêncio de uma brisa, apenas acompanha e provoca frescor. E, na energia de uma tempestade, é coautor da desarrumação necessária, ou não.

Estavam a lembrar de um menino escondido, desses que já não são mais garotos. Quando pequeno, de corpo e de vida andada, era ágil no pensar, no criar e no falar. O corpo pequeno nunca foi frágil e a mente, jovem, essa nunca teve limites. De desejos infinitos tinha a vontade de criar. A capacidade, essa já era inata.

Um dia, sozinho, o menino descobriu uma fantasia especial, que permitia a ele ser qualquer coisa. Podia ser rei, súdito, leão e pescador, senhor das selvas e até árvore de fruta. Qualquer coisa. Ganhou um universo.

Com a prática do uso dessa nova vestimenta, descobriu que era possível adentrar em outros Universos. Com outros donos de outras fantasias, de outras ideias. Com outros seres, deuses, monstros, bichos e plantas. E comidas, de verdade ou não, e que igualmente matavam a fome de alimento e de sentimento. Consigo e com os outros. Criando e co-criando.

Assim foi por muito tempo. Tanto que não dá nem pra contar, pois aquela fantasia tinha o grande poder de anular as contagens do tempo, de fazer o relógio quase que empacar. Rodar devagarinho. E fazer o ponteirinho do segundo se comportar com o de hora. E, assim, ganhar mais de 20 anos até o próximo natal.

Entre as muitas aventuras, me contaram que esse menino tinha criado uma linguagem nova, só dele, que só entendia quem tinha a tal fantasia. E assim, falava em “Pês”, “Tês” e em “Emês” toda vez que o assunto das pessoas já sem fantasias era tediante e sem graça.

A hora de vestir a fantasia era a mais esperada do dia-ano de todo dia. Às vezes, escondia a roupa mágica dentro da mochila e levava pra outros lugares. E assim, quando o assunto era insistentemente aperreante, disfarçava um espirro, ou uma espreguiçada mais longa e demorada, e vestia a fantasia. Assim, no meio de todos os outros. E ninguém percebia. As mulheres e homens enfadonhos se transformavam em gigantes árvores falantes com grandes narizes de pisca-pisca. Os animais se tornavam velozes parceiros de fuga e de conversas secretas. E os cenários? Ah, esses tinham as mais
variadas cores e formatos, que representavam tudo o que o menino tinha mais apreço.

Foi assim por muito tempo; mas, aí, chegou aquela fase do “aprender deixar de ser”. O paraíso lhe foi roubado. Infelizmente, somos convidados a desconstruir.

Os Mensageiros são mensageiros. É função deles levar as mensagens encomendadas, e desta forma, também transportar esse esquecimento.

A bênção da responsabilidade, para o menino, se fez castigo. Não soube decifrar o grande mistério aplicado pelos anos que se contam. O que era para ser soma virou acúmulo.

Agora, tempos contados depois, parece que o mundo daquele menino encolheu em forma e encantos. Os calabouços e moradas abrigam somente até a altura dos calcanhares. Os heróis, os monstros e as criações do universo parecem insossos e um pouco desabituados com as artes dos feitiços...

Parece menor, sem cores, sensato, com pressa, cauteloso; incômodo palpitante que insiste em dizer que o que foi não volta mais. E que zomba das faltas que aquela fantasia secreta faz.

Era fim do dia. Hora de ir sair do trabalho. Ir pra casa. Conversar, comer, sentar, olhar sem enxergar, escutar sem ouvir. Lamentar o que não fez. Não comparar o espaço. Não contar o tempo. Ou contar muito o tempo. Não conseguir, pois com um uma só piscada o dia-tarde-noite já se acabava.

No dia de uma das passagens dos Mensageiros por aquele canto de mundo (a estrada costumeira também passa pelo lado do menino, mas ele desaprendera a perceber os sinais, os arrepios, o desassossego da espera pelo deleite), o menino teve um clarão de comunhão de mente com espírito. Em uma rajada de vento cheinha de beleza, o menino foi levado pra longe. E sorriu. Um riso disfarçado nos lábios e imenso nos olhos. E lembrou quando era mestre de si mesmo e do mundo. Quando, à tarde, que já era noite, era também portal pra um novo tempo de novas aventuras.

Em algum lugar ele leu que as pessoas querem mentiras novas. Relutou na viagem consigo próprio. Talvez seja isso. Uma mentira. Talvez o que chamam de mentira não seja a falta de verdade. Talvez a mais pura verdade tenha disfarce de fraude. Talvez seja só questão de interpretação. Ganha nomes para afastar a gente da fonte que fazia voar, enxergar mais longe, ganhar leveza.

Os Mensageiros sopraram mais forte. O menino tinha que tecer melhor o fio da alegria. E deu certo.

Nesse momento, pensou que talvez devêssemos voltar à fase do desconstruir, mas, agora, e com mais propriedade, poderíamos também reconstruir, agregando, colaborando conosco mesmo e aplicando todo o nosso saber, sinônimo também de permissão. Consentimento para ser feliz. Para alcançar a verdadeira salvação: que só compreendemos quando voltamos a ser criança.

Talvez crescer seja a grande patacoada.

De nós para nós mesmos. O mensageiro me disse.

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