Filósofos da marginal*
(Shellah Avellar)
Eram 10 horas da manhã de um sábado ensolarado.
E então, partimos, os quatro cavaleiros apocalípticos em sua
jornada mítica em busca de nosso herói de cada dia.
Desafiando a carga da semana que trazíamos nas costas,
desfilamos a pé pelas entranhas da Paulicéia.
Pelas calçadas múltiplas adormeciam embolados sob cobertas
improvisadas, panos e mantas rotas-os invisíveis- homens, mulheres e crianças
que sonhavam a sono solto em pleno dia, num repasto de reis, posto que
recolhiam da vida suas últimas gramas.
Como num trem-fantasma, silenciosos, prosseguíamos em nossa
cavalgada a pé, como observadores privilegiados das misérias humanas, num
retrato sem retoques.
Tentamos o Terraço Itália, sem sucesso, num átimo de fugir
do rés do chão e ampliar a perspectiva para tornar microscópica aquela dura
realidade.
Nos distraímos com a majestade das velhas construções
revitalizadas e evocamos o espaço dos apartamentos e seus pés direitos quase
imperiais, comparando às ínfimas caixas de fósforo em que hoje nos amontoamos,
imposição da moderna engenharia urbana.
O ir e vir dos cidadãos se atropelando para consumir os
preços módicos do comércio do centro, atrasou nossos passos. Enfim, o Teatro
Municipal, o Viaduto do chá e tudo parecia simples e corriqueiro.
De repente, o coração sonhava, atraído pelos arranhados
toscos de um violino ao longe.Um homem, sentado num caixote, com um chapéu no
chão, onde descansava algumas parcas moedas.
A imagem se precipita na paisagem corriqueira. Paramos. Seu
nome? José Rosa, que paradoxo. Num cenário de vida tão cinzento a nossos olhos
desavisados- lá está ele: José Rosa,80 anos. Abre um sorriso que ilumina
qualquer desesperança.
Desata numa prosa simpática, floreada de rompantes
filosóficos a invejar qualquer simples mortal.
José Rosa se destaca. Desandou a falar de sua vida:
“Enviuvei duas vezes”.
Hoje, mora, de favor, numa Kombi velha estacionada no
estacionamento de um de seus dez filhos que botou no mundo para cirandar a
vida.
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do dia
Os olhos brilhantes de um ancião cuja sabedoria foi
garimpada nos tempos de “carreto humano” hoje substituído pelos instrumentos
musicais por conta do peso dos oitenta anos. Autodidata, aprendeu a tocar
violão, acordeão e violino. Marqueteiro por excelência, astuto como ele só,
percebeu na excentricidade do instrumento –o violino– o diferencial nas ruas,
para chamar a atenção dos transeuntes, já viciados nos sons dos violeiros da
cidade.
A alegria no seu semblante, intriga a todos nós. Ele
reforça:” A música é divina- a alegria diária da ausência de revolta, da
aceitação da própria condição, traz a paz. O sofrimento é objeto de nossa
relação com o conhecimento. A resignação com a própria condição faz o coração
se aquietar.”
Envergonhados nos despedimos e continuamos nossa jornada,
com um gosto de saudade daqueles olhos feiticeiros do José Rosa, que nos
embebedou com o suave licor da cana daquele moinho de energia.
Alcançamos a Praça da Sé e um pregador da Igreja
Pentecostal, entre outros oito pregadores, nos fez estancar por ali.
Francisco Alves, de terno cinza e gravata azul marinho.
Bíblia na mão, dedo em riste, caminha em círculos, vociferando os versículos e
salmos com uma convicção inabalável.
O que parecia mais um daqueles cegos fanáticos, nos
surpreende ao discorrer sobre Política, Mídia e os Illuminati.
Chegamos mais perto e Alves nos conta de sua vida. Mora na
Vila Nova Cachoeirinha e sai para pregar “a palavra” na Sé aos sábados. Novo,
por volta dos 30 anos, trabalha como porteiro em alguns prédios e é separado da
mulher e filhos.
Sua verborragia nos intriga. Há uma lucidez em seu discurso
“hipnótico”….
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Paraisópolis
É um daqueles oradores que catalisam seu público. Faz da calçada seu púlpito e da
bíblia sua batuta, qual maestro exímio, orquestra os passantes num banho
harmonioso de fala e busca por coerência. Olhar vivo e penetrante, apesar da
baixa estatura ele se destaca e discorre seguro sua argumentação.
Sob a égide de dos parâmetros da Igreja Pentecostal, ele se
derrama ao exibir seus conhecimentos de informática, YouTube outras redes
sociais, que embasam o testemunho sobre as verdades que acredita e prega.
Mas, particularmente, a mim, interessa seus eflúvios sobre
os Illuminati, sociedade secreta da era do iluminismo, hoje referência de uma
“suposta” Organização Conspiratória. O estabelecimento de uma nova ordem
mundial, que controlaria os assuntos universais com o objetivo de unir o mundo
em uma única regência que se baseia em um modelo político onde todos são
iguais.
Sou abalroada por
pensamentos e sensações desencontradas e vislumbro o Alves, em veste de linho
branco, descalço pelos pavimentos da Sé. E o som de sua voz, dá lugar às pítias
e outros gregos do Oráculo de Delfos,que desfilam em minha visão onírica-
Filósofos da Marginal – Rosa, através do seu violino. Alves através de sua
“pretensa” crença.
Ambos portam “muletas” a justificar nossa jornada mítica do
herói.
Não foi em vão. Rosa e Alves, nos salvaram da mesmice dos
sábados paulistanos e nos transportaram para lugares inimagináveis.
Arrancaram à fórceps, qualquer preconceito ou estereótipo
cristalizado em nossas células que explodiriam num tsunami de emoções
desenfreadas.
A partir dali nada mais fazia sentido em nossa caminhada.
O nosso periscópio congelou na imagem “entusiasmada” de
nossos sábios urbanos.
Entramos na Catedral da Sé, em busca de algum vestígio ou
fagulhas daqueles olhares incandescentes.
Tateamos pelos jardins do Pátio do Colégio em busca de nossa
salvação.
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Pauta
Batemos o sino várias vezes para nos lembrar da nossa
inocência do passado em que a fé se acendia nas velas das procissões do
santíssimo.
A fome bateu e nos valemos de São Jorge e tentamos nos
anestesiar na cerveja original, daquela estranha filosofia que nos contaminou.
E, seguimos, rumo à estação da Luz, ainda esperançosos de que lá encontraríamos
algo que superasse o impacto daqueles encontros inusitados.
Descansamos um pouco no Parque, tentando nos maravilhar com
as esculturas bizarras que se esparramaram pelos jardins.
E, desalentados e exaustos, voltamos para casa.
Não éramos mais os mesmos. As partituras de um violino
perdido na multidão esvoaçavam em nossas mentes.
O farfalhar seco das folhas amareladas de uma bíblia gasta,
estalava em nossos ouvidos como um bate-estacas.
Nascia um rio, em nossos corações, de uma hidrografia
incomensurável, regada a sangue, suor e lágrimas, congelando as nossas veias e
desencadeando em nós um céu de arco-íris em tons cinzentos, pelas lembranças
dos “filósofos da marginal” e das armaduras que criaram para se proteger da
morte e das profecias que anunciavam.
E, que, ao que tudo consta, estão “prestes” a se realizar.
*Este conto, na categoria Lenda Urbana, ficou dentre os 10
selecionados de 600 trabalhos do Departamento de Letras, do Núcleo de Estudos
Linguísticos da FURB.
** Postado originalmente no blog Sensorion
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