Reflexões Metafísicas
(Hersch W Basbaum)
Irritado por ter sido despertado antes da hora e justamente
quando estava pelo meio de doces emoções, tratei-a a patadas, ao vê-la,
sorridente, `à minha frente, auto-denunciando-se como responsável por mais essa
agressão à minha pessoa: acordando-me
por nada e para nada.
- Mas que diabo!-
disse-lhe, nervoso- Por que você
não me deixa em paz! Desapareça da minha frente e leve consigo esse seu sorriso
absolutamente imbecil! – que eu quero ficar com a minha dor... Pensei, mas não
disse.
E cobri-me com o lençol, como se, à maneira das crianças,
tapar os olhos fosse o recurso adequado
para fazer desaparecer a coisa concreta, real, desagradável e hostil.
- Muito bem... –disse-me,
paciente e delicadamente. – Você tem que aceitar. É importante, não vá fugir de novo!
Fugir! Essa não! Mal sabe ela o que esta falando. Sempre me irritou o uso
inadequado e irresponsável das palavras.
Provavelmente não foi isso o que ela quis dizer. Mas... coitada!...
ignorante demais, desconhece que “o
código verbal é impreciso, não sendo suficiente para exprimir as vivências mais pessoais, os
dinamismos mais sutis da mente”. Que use outros recursos, sua estúpida.
- Como é que estou
fugindo, se me encontro deitado em mnha cama!
- Ora, eu te conheço!
Ela me conhece! O que quer dizer... conhece? Como é que se
conhece as pessoas, é o que gostaria de perguntar. Que informações dispõe? Não
me parece ser do tipo que consegue
transcender o concreto e o imediatamente dado. É claro que, por todo esse
tempo, passei-lhe consciente ou inconscientemente, algumas informações. Mas
tenho certeza de que representaram um pequeno e frágil conjunto de dados incapaz de permitir tal segurança e
plena convicção.
- Não... você não me conhece! Longe disso! A efemeridade do
tempo e a fugacidade de nossos encontros
não lhe autorizam a fazer essa afirmação. Devo lembrar a você que “quanto mais homens
conheceres, mais diferentes almas sentirás em ti. Folias com os alegres, sonha com os poetas;
os aristocratas, criados entre artifícios, amam em ti, pelo atavismo de seus
apetites grosseiros, teus instintos rudes, e tu amas neles suas fidalgas
maneiras”.
- Deixe de enrolação...
que eu sei ver a realidade.
Audaciosa essa mulher! Há quantos anos se discute o que é a realidade? Isto é, quando se fala de realidade, se está
falando de que? Mas ela, altiva a altaneira, montada no garboso corcel de sua
ignorância, atravessa campos mesmo se desconhecidos. Se ela soubesse que a
realidade toda é um puro devenir, talvez enrubescesse ante tanta vesânia. O que
é realidade supostamente no presente caso? Talvez alguém deitado numa cama
(eu), tendo sofrido uma agressão (o
ser roubado em horas preciosas de sono), sendo instado a fazer
alguma coisa não suficientemente esclarecida (ela parece ter escamoteado alguma valiosa informação). Mas... é isso a
realidade? Ou ela se refere a algo mais transcendente, querendo discutir
intenções. De fato, ela não Foi bastante
clara quanto a esse ponto. Talvez seja melhor argui-la.
- De que realidade você está falando?
- Ora, não chateia!
Além de tudo, grosseira! Oh tempora, oh mores! Vem
paciência... “vem, embuça-te no manto mais
suave e orienta-me nesse precioso momento, conduze-me o meu pensamento,
dirige as minhas palavras!”
- Realidade não é aquilo que se acha presente. Há que se
distinguir entre o imaginar e o imaginado. Cada coisa, cada objeto, possui uma
essência.
- Vamos...vamos! -interrompeu-me ela, impaciente. Estou
cobrando um compromisso que você assumiu, comigo. E seria hoje, agora de manhã.
Mas que antipática! Ah!...se eu tivesse, aqui, “três escamas de dragão, bucho
de tubarão, um pouco de cicuta e bofes de um judeu malvado”, eu saberia o que
fazer com ela... inseto perverso!
- Ah!... “o mundo misterioso dos insetos e infusórios zumbe,
canta, voeja, destila o mel ou instila veneno!”
- Não diga essas coisas...meu bem! Não vê que eu faço isso
por amor?
Amor, amor. Que sabe ela disso? Só teve a mim na vida!
- Escute, mulher, “amor é um movimento, no qual todo objeto
individual portador de valores chega aos valores máximos que são os possíveis
segundo sua determinação ideal”.
- Não entendi, mas tá bem! Aceito! Mas vamos logo, tem que
ser agora! Já! Neste preciso e precioso instante!
- Não sei o que você quer que eu faça, mulher.
Recuso-me a me mexer, a não ser que tudo seja devidamente
esclarecido, detalhe por detalhe.
-Você sabe muito bem do que estou falando. Hoje é o grande dia, conforme havíamos combinado antes.É para o seu bem,
não esqueça!
- Para o meu bem!?
Estranhos seres são os homens! É o único que admite que um
sofrimento possa ser um bem. Realmente muito estranho.
- Seja homem!- ela insistia.
Será que ela refletiu sobre essa coisa misteriosa que é o homem ?
Qual o seu sentido e propósito nesse mundo? Sem essas respostas
fundamentais, nada a fazer. Daqui não me levanto. E sou soberano nas minhas
decisões.
- Olha... o homem está condenado o a ser livre. E se somos
fundamentalmente livres, não podemos escapar da necessidade da escolha
individual. A única saída, a única atitude realista é aceitar a nossa situação
e fazer as nossas opções com plena consciência do que estamos fazendo. Daqui
não me mexerei, portanto!
- Mas isso é ridículo!
-O que acontecerá se eu não me levantar daqui?
- Isso eu não sei e nem quero saber!
Só Sabe que nada sabe. Honesta, finalmente, reconhecendo
tudo desconhecer. Mas, ao mesmo tempo,
alienada, quer permanecer na ignorância. Lamentavel. Nem a si mesma consente ou
permite a procura intelectual do saber. Sente-se melhor em assumir o
obscurantismo pela segurança do não-saber. Cala-se por temer o choque com a
verdade. Ih!... santa ignorância, o que tanto mais permites! Leva sua
ignorância, mulher, aos píncaros do possível. Um altivolante.
- “O altivolante abutre, o cedro enorme e bronco, atroado de
aquilões, retalhado ao tronco dos gilvazes do raio!”
- Ora... não tenho mais saco! –exclamou ela, virando-se e
andando em direção à porta. Abriu-a
e, de lá, gritou:
- Doutor... por favor venha até aqui. Ele não quer tomar a
injeção.
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