sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

CONTOS CORRENTES

Reflexões Metafísicas   

(Hersch W Basbaum)


Irritado por ter sido despertado antes da hora e justamente quando estava pelo meio de doces emoções, tratei-a a patadas, ao vê-la, sorridente, `à minha frente, auto-denunciando-se como responsável por mais essa agressão à  minha pessoa: acordando-me por nada e para nada.

- Mas que diabo!-  disse-lhe,  nervoso- Por que você não me deixa em paz! Desapareça da minha frente e leve consigo esse seu sorriso absolutamente imbecil! – que eu quero ficar com a minha dor... Pensei, mas não disse.

E cobri-me com o lençol, como se, à maneira das crianças, tapar os olhos fosse o recurso adequado  para fazer desaparecer a coisa concreta, real, desagradável e hostil.

- Muito bem... –disse-me,  paciente e delicadamente. – Você tem que aceitar. É importante,  não vá fugir de novo!

Fugir! Essa não! Mal sabe ela  o que esta falando. Sempre me irritou o uso inadequado e irresponsável  das palavras. Provavelmente  não foi isso  o que ela quis dizer. Mas... coitada!... ignorante demais, desconhece que  “o código verbal é impreciso, não sendo suficiente para  exprimir as vivências mais pessoais, os dinamismos  mais  sutis da mente”.  Que use outros recursos,  sua estúpida.

 - Como é que estou fugindo, se me encontro deitado em mnha cama!

- Ora, eu te conheço!

Ela me conhece! O que quer dizer... conhece? Como é que se conhece as pessoas, é o que gostaria de perguntar. Que informações dispõe? Não me parece ser do tipo que  consegue transcender o concreto e o imediatamente dado. É claro que, por todo esse tempo, passei-lhe consciente ou inconscientemente, algumas informações. Mas tenho certeza de que representaram um pequeno e frágil conjunto de  dados incapaz de permitir tal segurança e plena convicção.

- Não... você não me conhece! Longe disso! A efemeridade do tempo e a fugacidade de nossos encontros  não lhe autorizam a fazer essa afirmação.  Devo lembrar a você que “quanto mais homens conheceres, mais  diferentes  almas sentirás em ti.  Folias com os alegres, sonha com os poetas; os aristocratas, criados entre artifícios, amam em ti, pelo atavismo de seus apetites grosseiros, teus instintos rudes, e tu amas neles suas fidalgas maneiras”.

- Deixe de enrolação...  que eu sei ver a realidade.

Audaciosa essa mulher! Há quantos anos se discute  o que é a realidade?  Isto é, quando se fala de realidade, se está falando de que? Mas ela, altiva a altaneira, montada no garboso corcel de sua ignorância, atravessa campos mesmo se desconhecidos. Se ela soubesse que a realidade toda é um puro devenir, talvez enrubescesse ante tanta vesânia. O que é realidade supostamente no presente caso? Talvez alguém deitado numa cama (eu), tendo sofrido uma agressão  (o ser  roubado em horas  preciosas de sono), sendo instado a fazer alguma coisa não suficientemente esclarecida (ela parece ter escamoteado  alguma valiosa informação). Mas... é isso a realidade? Ou ela se refere a algo mais transcendente, querendo discutir intenções. De fato,  ela não Foi bastante clara quanto a esse ponto. Talvez seja melhor argui-la.

- De que realidade você está falando?

- Ora, não chateia!

Além de tudo, grosseira! Oh tempora, oh mores! Vem paciência... “vem, embuça-te no manto mais  suave e orienta-me nesse precioso momento, conduze-me o meu pensamento, dirige as minhas palavras!”

- Realidade não é aquilo que se acha presente. Há que se distinguir entre o imaginar e o imaginado. Cada coisa, cada objeto, possui uma essência.

- Vamos...vamos! -interrompeu-me ela, impaciente. Estou cobrando um compromisso que você assumiu, comigo. E seria hoje, agora de manhã.

Mas que antipática! Ah!...se eu  tivesse, aqui, “três escamas de dragão, bucho de tubarão, um pouco de cicuta e bofes de um judeu malvado”, eu saberia o que fazer com ela... inseto perverso!

- Ah!... “o mundo misterioso dos insetos e infusórios zumbe, canta, voeja, destila o mel ou instila veneno!”

- Não diga essas coisas...meu bem! Não vê que eu faço isso por amor?

Amor, amor. Que sabe ela disso? Só teve a mim na vida!

- Escute, mulher, “amor é um movimento, no qual todo objeto individual portador de valores chega aos valores máximos que são os possíveis segundo  sua determinação ideal”.

- Não entendi, mas tá bem! Aceito! Mas vamos logo, tem que ser agora! Já! Neste preciso e precioso instante!

- Não sei o que você quer que eu faça,  mulher.

Recuso-me a me mexer, a não ser que tudo seja devidamente esclarecido, detalhe por detalhe.

-Você sabe muito bem do que estou falando. Hoje é  o grande dia, conforme  havíamos combinado antes.É para o seu bem, não esqueça!

- Para o meu bem!?

Estranhos seres são os homens! É o único que admite que um sofrimento possa ser um bem. Realmente muito estranho.

- Seja homem!- ela insistia.

Será que ela refletiu sobre essa coisa misteriosa que  é o homem ?  Qual o seu sentido e propósito nesse mundo? Sem essas respostas fundamentais, nada a fazer. Daqui não me levanto. E sou soberano nas minhas decisões.

- Olha... o homem está condenado o a ser livre. E se somos fundamentalmente livres, não podemos escapar da necessidade da escolha individual. A única saída, a única atitude realista é aceitar a nossa situação e fazer as nossas opções com plena consciência do que estamos fazendo. Daqui não me mexerei, portanto!

- Mas isso é ridículo!

-O que acontecerá se eu não me levantar daqui?

- Isso eu não sei e nem quero saber!

Só Sabe que nada sabe. Honesta, finalmente, reconhecendo tudo  desconhecer. Mas, ao mesmo tempo, alienada, quer permanecer na ignorância. Lamentavel. Nem a si mesma consente ou permite a procura intelectual do saber. Sente-se melhor em assumir o obscurantismo pela segurança do não-saber. Cala-se por temer o choque com a verdade. Ih!... santa ignorância, o que tanto mais permites! Leva sua ignorância, mulher, aos píncaros do possível. Um altivolante.

- “O altivolante abutre, o cedro enorme e bronco, atroado de aquilões, retalhado ao tronco dos gilvazes do raio!”

- Ora... não tenho mais saco! –exclamou ela, virando-se e andando  em direção à porta.  Abriu-a  e, de lá, gritou:

- Doutor... por favor venha até aqui. Ele não quer tomar a injeção.




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