
Para você ter uma ideia do que vem por aí, postamos, a seguir, um pequeno fragmento. Boa degustação!
Além do Rio dos Sinos (fragmento)
O vento, de repente, dá uma rabanada na mudança de direção,
e a mulher tem de enxugar com a palma da mão os respingos do rosto. O marido,
ocupado na condução dos bois de volta ao meio da estrada, olha de viés para
Florinda e supõe que ela esteja mais uma vez chorando. A mulher intui a
irritação do marido, seu rosto duro, pois sente-se ele provavelmente acusado
pelo que considera as lágrimas da esposa. A decisão de vir morar no alto do
morro do Caipora tinha sido tomada depois de muita briga, muito choro, diversas
ameaças. Fora uma decisão arrancada com alguma violência. Que outra solução,
hein? Houve momentos em que os berros de Florinda diziam que ela preferia
morrer a se mudar para aquela beirada de inferno, apenas suposto e às vezes
descrito por Nicanor, nunca, porém, imaginado tão feio como agora podia ver.
E ele, com voz muito áspera:
− Tu vai começar tudo de novo?!
PRIMEIRA PARTE
Difícil reconhecer na cara triste do dia o ponto, o tanto, o
quanto dele resta. Por causa do chuvisqueiro em que haviam penetrado manhã a
meio e que parece ainda agora a dissolução do céu que, renitente, se asperge
sobre a terra. Principalmente por cima dos morros em cujos cumes jazem as
nuvens. Morros montanhas, escuros, tenebrosos.
Uma pata larga resvala coisa de oitenta centímetros: sulco
longo, o mundo marcado. O boi brasino, sem outro nome além do pelo, se ajoelha
e arrasta uma braça o hosco seu companheiro, que, pescoço torto a ponto de um
gemido, se firma nas quatro patas cravadas no barro e bufa querendo saber, aquele
peso, a carreta chacoalha e um dos meninos resmunga. É a hora que Florinda
desce os olhos pela vertente do morro mais próximo e examina o interior escuro
da carreta. Só olha e pouco vê debaixo da tolda. O chuvisqueiro arranca brilhos
escuros das folhas das árvores mais próximas e molha aquelas encostas por onde
se vai ao céu. O chuvisqueiro.
Ao virar a cabeça outra vez para a frente, para o mais
claro, e encarar a tamanha altura, sente medo de que o alto cume se despenhe
por cima da carreta, e reage subitamente encolhendo-se um pouco e mantendo os
músculos retesados. O medo. É com raiva que volta a olhar para o alto. Com toda
sua raiva. Olha com sentimento de desafio. Então vê uma testa enrugada, as
sobrancelhas erguidas, a carantonha aterradora do morro. Uma coisa grandiosa a
espreita e ameaça. Desvia os olhos para a estrada a sua frente, as mãos suadas.
A antipatia nascida das palavras de Nicanor agora cresce ilimitada com a visão
aguada dos morros.
Há muito tinham deixado o Angico para trás, encolhido pelo
chuvisco. Debaixo. Percorreram os três quilômetros de casas esparsas na beira
da estrada sem uma única palavra. Foi aqui, ela pensou. O passado chegando em
forma de notícia. Expulsos da roça pelo chuvisqueiro, homens debaixo de seus
chapéus vêm à porta das bodegas com os cálices na mão para se interrogarem
sobre uma carreta toldada, quem é que é?, quem é que pode ser?
[...]
− Tu vai começar tudo de novo?!
Em sua voz trovejam ameaças de quem tem o futuro preso entre
os dedos, senhor dos destinos. Florinda demora-se um pouco para responder.
“Tudo”, uma palavra tão ampla quanto vazia, ela agora vai preenchendo com as
brigas do casal, sua recusa de sair aventurando-se por aí para seguir um
marido, suas várias recusas, todas muito enfáticas, de se mudar para o alto de
um morro apenas conhecido pelas descrições de Nicanor, imaginado como um inferno
rente ao céu pela dureza das palavras com que o marido se referia ao lugar onde
tinha nascido. Ela sente raiva na pergunta do marido e lhe devolve em
ressentimento, além de uma vontade imensa de agredi-lo, sua resposta. Começar o
quê? A sensação de estar sendo arrastada por esta mão bruta pelo barro da
estrada lodosa sem qualquer possibilidade de retorno, como uma praga, um
castigo, com destino marcado, essa sensação, desde a morte do pai, jamais
deixara de sentir. Se estava pagando por atos passados, continuaria a pagar até
a última gota de vida. Para tanto estava com o coração petrificado.
− E a pior coisa é essa asnice de achar que eu estou
chorando. Já chorei tudo que tinha de chorar. Deixei minhas lágrimas na terra
que foi do meu pai. Agora a fonte secou. Nunca mais tu vai ver lágrima descendo
pelo meu rosto. Então não vê que foi a chuva que me molhou? Por que tanta
asnice assim?
A voz de Florinda sobe como do estômago por canal apertado e
áspero e não sai pela boca, mas da boca vai caindo aos pedaços.
Zuleide, acomodada sobre um pelego entre dois sacos, solta o
berreiro da fome e a mãe, muito brusca, abandona o banco e engatinha por cima
de objetos e filhos até a criança. Ainda bem, pensa a mãe enquanto descobre o
peito. Ainda bem, porque Nicanor dava sinais de querer continuar a discussão.
A boquinha aberta, a cabeça agitada, não há necessidade de
luz para que a menina encontre o mamilo para sugar-lhe a seiva. Percebendo a
proximidade da mãe, Breno, o filho de seis anos com voz chorosa, se queixa de fome.
Espera tua vez, meu filho. Não posso fazer tudo ao mesmo tempo. O embalo de
ritmo irregular da carreta prossegue e o menino dá a impressão de ter
adormecido.
Da posição em que se pôs para amamentar a filha, Florinda
pode atravessar com os olhos uma fresta na tolda que protege a traseira da
carreta e divisa o cavalo baio que, preso pelo cabresto, segue a passo moroso o
andamento dos bois. Seu lombo molhado, as orelhas murchas. Ele, esse cavalo,
fez parte dos acertos de contas, somado a outras coisas, umas migalhas, e algum
dinheiro. Pouco dinheiro. Um velhaco ganancioso, aquele seu irmão. Que sua vida
seja para sempre um inferno. A mãe se esforça por não se irritar ainda mais com
aquilo, pois leite de mãe irritada causa dor de barriga na criança. Não é assim?
Prefere olhar para cima, procurando furos na lona da tolda. Mas depois de
descobrir uns dois ou três sem tamanho que preocupe, ela se cansa e se volta
para a filha, que parece insaciável. Por fim, vencida pela impaciência, e com
voz abafada que mal chega aos ouvidos de Nicanor:
− Ainda falta muito, Nicanor? As crianças não aguentam mais.
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