quinta-feira, 15 de junho de 2017

ORELHA


Excepcionalmente, a postagem de hoje não traz uma orelha, mas uma apresentação, pois o texto em questão não é uma obra literária e sim um relatório de Pós-doutorado*. 

Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama


Desenterrar pedras preciosas que o tempo teima em enterrar, a mim parece uma atividade emocionante. Pelo menos foi com emoção que terminei a leitura de Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama, o relatório de Pós-doutorado que Franco Baptista Sandanello apresentou à Unesp de Araraquara, com pesquisas no exterior, principalmente no Centro de Pesquisas sobre os Países Lusófonos, da Sorbonne Nouvelle – Paris III. E, apesar de seu espírito científico de pesquisador criterioso, que foi ao fundo de seu assunto, percebe-se muitas vezes que o Franco trabalhou movido por dois estados de espírito diferentes: a curiosidade do cientista, que busca a comprovação e o significado de tudo que afirma; a emoção do poeta a quem as sucessivas descobertas deslumbram.

Não está errado dizer que o corpus do Franco foi a obra completa de Domício da Gama. Sim, porque além de seus dois livros, Contos a meia tinta e Histórias curtas, o autor foi descobrir contos publicados apenas em jornais da época e estudou cuidadosamente as dezenas de crônicas de Domício. E isso tinha uma importância imensa para seu relatório: Domício da Gama foi um dos introdutores, ao lado principalmente de seu amigo Raul Pompeia, da literatura
impressionista no Brasil. Era nas crônicas remetidas de Paris que ele discutia as características do impressionismo literário.

 Então ocorre uma pergunta: se foi tão grande a importância do escritor para o desenvolvimento da literatura brasileira (e pode-se afirmar sem susto que o Impressionismo foi o pai do Modernismo), por que não aparece nem como referência remota nos livros escolares, como também não é estudado nas faculdades de letras?

A resposta a uma questão como essa passa pelo entendimento do cânone. Quem ou o que canoniza?
Segundo o Houaiss, canonizar é “reconhecer e declarar santo (indivíduo falecido), inscrevendo no cânon dos santos, segundo as regras e rituais prescritos pela igreja.” A linguagem da crítica literária foi buscar provavelmente na linguagem eclesiástica a palavra com que afirma a consagração de certos autores, que entram para uma espécie de catálogo com os nomes daqueles que deverão ser lembrados pela posteridade.

No caso da literatura, a canonização tem inúmeros agentes. A universidade, com seus estudiosos que remetem alguns nomes para o reino da glória, ou para a escuridão do limbo; a mídia, com seus espaços (cada vez menores) para críticos saídos ou não das cátedras universitárias; leitores formadores de opinião; as academias, enfim, aquilo que se pode chamar de “comunidade literária”. Os interesses que estão por trás de uma canonização, eis o que nem sempre é muito claro. Só para exemplificar: Olavo Bilac tornou-se um colaborador assíduo do poder político nacional. Resultado: o Parnasianismo sufocou o Simbolismo e o retrato do “príncipe dos poetas brasileiros” foi afixado na grande maioria das salas de aula, muitas vezes ao lado do mandante de então.

Por mais de um século ninguém saía da escola (primária, como se dizia antigamente) sem que tivesse decorado algum verso do “príncipe”. Era evidente o interesse político em sua canonização. Não que lhe faltassem méritos literários, mas o colaboracionismo foi o móvel para que se lhe chamasse de “príncipe dos poetas”.

Pois bem, Domício da Gama, em que pese a importância de seu papel na história da literatura brasileira, foi esquecido, rolou para a escuridão.

Sandanello inicia seu trabalho com uma revisão da obra (por sinal diminuta no que tange à produção literária específica) de DG, destacando os dois livros em que publicou a maior parte de seus contos, mas comentando ainda aqueles que ficaram de fora. Além disso, comenta a produção cronística, em que o autor pratica com certa abundância a metaliteratura, em que o Impressionismo é sua matéria principal.

Em seguida, Franco Baptista recolhe e comenta uma extensa fortuna crítica da época em que DG viveu, ou seja, fins do século XIX, início do XX. Extensa, no sentido de que os textos consultados eram esparsos e constavam tanto em jornais como revistas e, por fim, em textos acadêmicos que o antecederam.

No capítulo que se segue, o leitor encontrará um trabalho exemplar para que se entenda o que é o Impressionismo literário. Qual sua origem, qual seu parentesco com o Impressionismo pictórico, quais suas características principais, aquilo que o diferencia de outras estéticas. Estabelecer o parentesco com o Realismo/Naturalismo é outro mérito do trabalho.

Não por último, mas no ver deste leitor, o capítulo mais interessante é aquele em que FBS exerce com argúcia seu pendor para a crítica literária, a análise dos contos de Contos a meia tinta e Histórias curtas. Suas análises nos revelam o que há de impressionista em cada um dos contos, mas também apontam aquilo que pode ser entendido como desvios de rota.

Este estudo avulta em importância se considerarmos que Domício da Gama, com ele, ressurge do esquecimento e ganha espaço no panteão de que é merecedor. É uma forma de canonização. O que não é pouco.

Há, por fim, referências a autores que também podem ser classificados como impressionistas, como Raul Pompeia, no século XIX, e Adelino Magalhães, nos albores do século XX. Autores e tendências, como o decadentismo, de que todos se abeiraram, prepararam o terreno onde o Modernismo viesse medrar.

Para os amantes da literatura, mas sobretudo para aqueles cujo interesse vai até os estudos literários, a presente obra, além da importância científica (pelas análises, pelas descobertas, pela reunião de quase tudo que já se disse de DG, pelo esclarecimento de muitos aspectos de uma estética tão pouco estudada entre nós), é uma delícia de leitura em virtude do estilo fluente, da linguagem sem a maioria dos tropeços apresentados por especialistas.
Boa viagem!


Menalton Braff

*Sans désirs, ni regrets: o impressionismo “a meia tinta” de Domício da Gama
Relatório de Pós-doutorado apresentado à Unesp de Araraquara

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