Publicado originalmente na revista Bula
Nunca entendi a razão por que se juntam pessoas de grupos os
mais heterogêneos para ouvir falar de assuntos com alguma especificidade, ou
seja, de conhecimento não corriqueiro. Naquela noite fui incumbido de discorrer
sobre linguagem literária, assunto que se leva alguns anos estudando para se
ter pálida ideia, mas que muitos promotores de eventos culturais supõem
passível de ser destrinchado em uma hora, uma hora e meia. E pra qualquer
plateia.
Isso tem ocorrido na minha vida e com bastante frequência.
Como o público sai depois de uma palestra dessas eu não sei, quanto a mim, saio
suando, com vontade de morrer, mas sem coragem para o ato final.
Uma dessas ocasiões me deixou marcado. Bastante gente na
plateia, para glória e honra dos promotores e angústia do palestrante, que, com
cara de pateta, olhava de um lado para o outro tentando descobrir qual o padrão
de linguagem a ser empregado. Apresentações e agradecimentos, lá estava eu de
microfone na mão ainda enrolando com alguma graça para conquistar o público,
até que não deu mais para segurar e o assunto foi enfrentado. A certa altura,
ocorreu a lembrança de que alguns exemplos sempre ajudam, pois dão concretude a
conceitos por vezes não familiares. Por isso, chamei a atenção da plateia para
o que faria: dois enunciados diferentes. Então parodiei um poema:
“Uma mulher declara que nem se deu conta da passagem do
tempo, e está perplexa por não se reconhecer por causa das mudanças”.
Em seguida li, da Cecília Meireles, Retrato, que muitas
vezes carrego comigo:
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
Em seguida, a pergunta que me pareceu óbvia:
— Qual dos dois textos vocês preferem?
Houve um movimento de pessoas se remexendo nas cadeiras,
alguns cochichos e nada mais. A plateia parecia me ignorar, um pouco incomodada
com o assunto.
Mas eis que se levanta uma mulher, ergue o braço e me
pergunta se pode responder com toda sinceridade. Respondi que não era outra
coisa o que eu queria, já contando com o sucesso da minha tática. Tive a
impressão de que todo o público olhou para ela numa muda solidariedade.
— Pois eu, ela disse, prefiro o primeiro, porque do segundo
não entendi coisa nenhuma. O primeiro é mais claro, mais simples, a gente
entende.
Bom, nessa noite o acaso me salvou. O que falei sobre o caso
já nem me lembro mais, mas parece que fui até o fim. Com os braços e pernas
dormentes, sentindo algumas dezenas de graus de febre, dor de estômago e
vontade de sair voando, mas devo ter ido até o fim. O acaso que me salvou de
pôr um fim a minha vida foi a chegada de um amigo com quem tive de jantar e
brindar nosso encontro, e continuar brindando até tarde da noite. Muito
tarde.
Hoje, salvo pelo acaso, levo em conta duas considerações: A
mulher, do primeiro texto, não existia, era uma invenção minha. Portanto, a
informação não informava nada, apesar da simplicidade e da linguagem comum,
pragmática, que é esta linguagem que se usa a toda hora para nossa troca de
informações com os semelhantes. Não é
isso que se busca na literatura. O primeiro texto está escrito em linguagem
social, comum a todos, sem nada de original, sem marca nenhuma de autoria. O
segundo texto explora toda a virtualidade das palavras: a sonoridade, as
combinações inusitadas, a interação entre elas que as potencializa. O segundo
texto, por seus arranjos e combinações, pelo eco, pela delicadeza no modo de
falar de sentimentos mais concretos, por tudo isso, é um texto que não serve
para informar, mas para encantar. Importa saber se a Cecília Meireles era jovem
ou velha quando escreveu o poema? Claro que não. Ela universalizou uma
experiência humana que não necessariamente era a sua.
Enterrados em sua circunstância material, nem todos se
encantam com a beleza.
É fato, mas não é findo, tentemos , água mole em pedra dura, e um dia assim, de repente, vai que fura, luz inundando a cegueira, instalando um sorriso clandestino, felicidade pura.
ResponderExcluirObrigada pelo poema de Cecília.