quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

CANTIGAS DE AMIGOS

Os poemas que seguem são do poeta e tradutor Cláudio Willer, a maior autoridade em Breton de nosso meio.


A PALAVRA

vocês não entenderam nada, vocês não sabem nada
poesia não é querer escrever bem
poesia é o que eu ainda irei relatar em prosa
poesia é o que ainda pretendo escrever

para depois reler e dar risadas, imaginando o espanto de quem vier a ler o que escrevi
poesia é velocidade
do disparo de revólver verdadeiro, da janela, no automóvel que ia passando por aquele alvo escolhido ao acaso,
poesia é som,
o áspero ruído do gume de diamante sendo testado por dois especialistas em arrombamento na vitrina daquela loja de armas a 80 m. de distância de uma delegacia (eu esperava no carro) (se houvesse cedido, levávamos tudo)
poesia é luz
daquelas janelas abrindo-se todas ao mesmo tempo, todo mundo acordando para ver que espécie de confusão era essa, o que aquele bando de malucos fazia na rua àquela hora
poesia é noite
a outra noite, aquela (no HC, minha pressão caiu, e depois ainda tive que dar a notícia aos amigos)
poesia é dizer
é ela dizer: “como você me revoluciona por dentro”
poesia é escrever
com um cuidado enorme, pesando cada palavra, para não me declarar réu confesso
poesia é névoa
de fumaça enchendo o quarto, todo mundo a dar risadas sem conseguir parar
poesia é porrada
algo bem melhor do que briga de scholars, aqueles da outra universidade contra esses desta,
poesia grossa (cacete rombudo, que tal esta imagem?)
poesia é isso, é isto, também é aquilo, é agora
poesia é o que sempre soubemos
o conhecimento animal
um núcleo raivoso anterior à Queda
- Gnose
estou falando de filosofia, de essência,
uma exploração do desconhecido pelo corpo, através do corpo,
o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro todo
o que sei é onde penetrei,
- o telefonema que me traz lembranças de trinta anos atrás, de ontem, de agora, seu som a vibrar neste ar parado de noite antes de mais uma tempestade -
nada me interromperá
sempre usei uma linguagem direta,
Prometeu, Fausto
não quero falar, quero ser dito
sejamos densamente humanos
como a chuva
no ar saturado de excesso
            parto ao encontro do núcleo selvagem de qualquer coisa
diamante ou lágrima perdida no fundo do bosque
ex-deusa
            assim me despeço
mas eu a reencontrarei
                                   lunar
resta saber o sonho, parábola da vida







VISÃO DE NOVA YORK









O grande cavalo de lágrimas azuis desce do Oeste, lento como a névoa dos trigais. São hotéis de granito e espuma plástica em ruas que outrora foram violentadas, em manhãs mais suaves que a brisa dos grandes portos. Todos os túneis, todas as cavernas se encontram em um desfiladeiro de torreões metralhados. Todos os trilhos convergem para um só ponto, todos os subways apontam para uma só direção, e na vegetação dos grandes parques cresce o arbusto andrógino cujas raízes são de metal e seda. Os retângulos magnéticos geraram uma cidade onde cavalos à solta pisoteiam os gerânios dos patamares e a combustão espontânea anima os corpos dos amantes nas tardes de verão. Sementes germinarão violentamente em Blecker Street, pois um pântano noturno sacode os alicerces dos grandes prédios embebidos em aguarrás. Gritos gelados soam em um corredor de pálpebras estreitas, e no parque onde pastam as lhamas emergem montes de cristal, despertando a última sentinela de uma paisagem de antenas partidas e ventiladores retorcidos.




NY, 07/1963






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