sexta-feira, 9 de novembro de 2018

CONTOS CORRENTES


Conto publicado originalente na Antologia Solidária Barretos.

ONOFRE


(Uilian Gonzales)


Era um conjunto residencial, daqueles muito em moda na primeira metade da década de 90.
Classe média baixa, renda pouca, taxistas, contadores, pequenos empresários.

Prédios de três andares, sem elevador, carros no sol, campo de peteca e uma mal mantida piscina.

Meio velho, decadente, sujo; parecia que os moradores tinham exaurido toda a sua renda no pagamento das prestações do BNH e que nenhuma reforma era acolhida pelos condôminos. É o que se via na pintura descascada e no lamentável estado dos jardins.

Mas, se o dinheiro escasseava, a disposição não; a quantidade de meninos que circulavam pelas partes comuns dava ideia de que todos os maridos estavam funcionando regularmente; também o alarido, o comportamento indicava que se tratava de meninos com uma educação básica, sem finura, sem requintes; eram filhos de pais mais preocupados com outros problemas do dia a dia. Com pouco tempo e dedicação para com os filhos; de famílias sem conversa, cada um na sua.


Com tantas famílias vivendo tão perto, em tão pouco espaço, o relacionamento social fica intenso; todo mundo conhece todo mundo, todos se trombam a toda hora. E coisas começam a acontecer.

É neste clima que a nossa história se passa.

Tati (Tainara) chegou em casa, passou pelo porteiro sonolento e sujo; subiu, de dois em dois, os degraus da escada que levava ao seu apartamento e abriu a porta, ofegante. O pai, de bermuda e latinha de cerveja, via televisão, pé no chinelo, barriga de fora e camiseta regata com uma inscrição comercial.

A mãe, Esmeralda também estava na sala; produzida, com o cabelo loiro tingido, dava um tempo para ir a uma reunião de sua Paróquia. Usava recursos de 20 anos, mas já passara dos 45 e mal conseguia esconder a papada, fruto das guloseimas, nem o aumento desproporcional de sua anca e bunda, mais realçadas ainda pelas roupas justas, de cores gritantes, que ela gostava tanto de usar.

A terceira pessoa na sala era Kiko (nasceu Guilherme - não se sabe o porquê do apelido), irmão de 

Tati (que, seguramente, veio de Tainara). Tinha 18 anos, bom porte, cabelos pretos, pele muito clara. 

Estava sem camisa e, pelo torso nu, notavam-se os efeitos da malhação. Era, no conjunto da família, o mais tranquilo, o mais orientado; tinha terminado os estudos do 2 o  grau e se preparava para o vestibular. Tinha um futuro promissor.

Tati, que ainda não comentamos, tinha 19 para 20 anos, era miúda e magrinha. Oscabelos, como da mãe, de louro artificial, um modo agitado, displicente de ser, a tudo retrucando ‘’foda-se’’: era um problema para o pai, para a mãe e para o irmão.

Todos pararam o que faziam e olharam para Tati, esperando uma saudação.

Mas ela, ainda ofegante, gritou:

- Onofre tem o vírus!

O silêncio foi geral; o incômodo era geral – todos se olhavam, sem saber o que dizer; Kiko empalideceu e o Tonho – o pai – começou a correr os olhos pela sala, sem parar em nada ou ninguém. 

Esmeralda puxou uma cadeira e se sentou, enquanto murmurada ‘’meu Deus!’’.

Tati ficou parada, muda, esperando uma reação; não demorou muito que sua impaciência e descaso com que tratava os outros, especialmente sua família, a forçasse a repetir:

- Eu disse que Onofre tem o vírus! Tá com AIDS!”, e começou a soluçar desconsoladamente, enquanto, com dificuldade, conseguia dizer – “e eu transei com ele, com e sem camisinha!”.

Aí o choreiro foi geral; todos, sem exceção, abriram a boca.

Esmeralda, com a maquiagem excessiva borrada, murmurava, enquanto balançava a cabeça: “não pode ser, não pode ser!”.

Tonho procurou um lenço de papel e assou o nariz, olhando, atônito, para Tati.

Kiko engoliu um soluço e limpou os olhos das lágrimas.

Tati, recuperada, olhou estranhamente para todos e disse: 

- Não sabia que gostavam tanto de mim! Não sabia! – e, desconfiada, repetiu: “não sabia!”.

Todos, como se fosse um coro: “estamos preocupados com você!”.

Tati puxou bastante ar, inchou e gritou, cheia de ódio e desespero:

- Mas também, tem muita gente comigo! Muita gente mesmo! Onofre não deixava para depois!

Mais calma continuou: “fizemos uma reunião no clube de dança. Como o assunto era grave, todo mundo começou a falar; algumas até negaram de início; mas o Onofre já foi para cama com quase todas. Eu também não sabia, mas enquanto ficava comigo, ficava também com mais duas” – e murmurou, entre dentes: “safado…… homem não presta!”.

E a mãe, condoída, preocupada, esfregando uma mão na outra, pergunta:

- Fez exame? Já tem o resultado? Algum sintoma?

- Já. Não existe mais dúvida. Fez três, todos positivos... Agora sou eu que tenho de fazer e estou morrendo de medo... a gente transou tanto! – respondeu Tati.

- Também! Você dá mais do que chuchu na cerca! – gritou Kiko.

Todos pararam subitamente e encararam Kiko; ele era um menino educado, jamais fazia uma grosseria; sua reação espantou a todos.

Kiko, surpreso com sua própria reação, baixa os olhos e, antes que voltasse a chorar, sai correndo e se tranca em seu quarto.

A mãe, alucinada, fora de si, com a maquiagem borrada, os cabelos em desalinho e uma roupa justa, amarela canário que em tudo destoava com o momento, sai do apartamento enquanto murmura: “vou para minha reunião...”.

Ficam Tonho e Tati.

A mãe desce correndo as escadas, passa pela portaria como um vendaval e, na rua, murmura para si mesma: “se der positivo, me mato! Como poderei enfrentar minhas amigas e meu marido? Me mato!”.

Caminhava sem rumo, murmurando “me mato! Me mato!”.

Tonho ouve o filho que soluçava no quarto e diz à Tati:

- Espera um pouco, vou ver seu irmão.

Tati, com a arrogância e o egoísmo aumentados pelo desespero, responde:

- Espero nada! Vou encher a cara, vou dar um tapa. Vou pôr para fuder!” – sai, batendo a porta com violência.

Tonho bate na porta do quarto do filho, que grita:

- Depois! Depois, agora não!”.

- Abre, meu filho! Deixa eu falar com você! Por que tanto desespero?’’ - pergunta.

Kiko não dá resposta. O pai bate de leve na porta, dizendo “abre filho! Abre!”.

Algum tempo se passou e, de repente, Kiko abre a porta e diz, envergonhado:

- Pai, vou ter que fazer exame! Posso estar contaminado...”.
Tonho parou um pouco, criou coragem, passou a mão na cabeça do filho, num gesto de enorme carinho e – como se pedisse desculpas, diz:

- Eu também, filho! Eu também...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças