terça-feira, 11 de julho de 2017

O GORRO DO ANDARILHO

Publicamos, a seguir, o conto analisado pelas pesquisadoras Karla Ribeiro Santos  e Vera Lucia Rodella Abriata, em artigo publicado na revista acadêmica RECORTE, que postamos ontem aqui no blog.

O Gorro do Andarilho

- Me dá! – repete com voz envelhecida e olhos grisalhos, sem brilho.

Como resposta, uma gargalhada sem dentes e de barba suja, desgrenhada.

Seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do Gordo, foi a primeira coisa que viu quando acordou. Então pediu uma primeira vez, a mão teimosa estendida. Era seu gesto antigo, de sete anos, repetido desde a perda do emprego e da família, quando se viu sem lugar onde dormir, senão os ninhos que fazia com a noite escorregando do céu. Ali mesmo, na beira da estrada, ou debaixo de qualquer ponte, abrigado.

Não gostava do Gordo, porque falava demais com sua boca e contava umas histórias de vida que não poderiam ser dele. Era um mentiroso ocupando lugar nos acostamentos. E andava rápido, com seu tamanho, como se tivesse aonde chegar. Não gostava. Além de mentiroso, era abusador, por se julgar
um maioral. Pois apesar da ojeriza pelo companheiro, não era a primeira vez que partilhava com ele seu almoço debaixo daquela mesma gameleira.

Pedia muito mais com os olhos e as mãos, parados de tão duros, do que com as palavras, em cujo manejo vinha destreinando nos acostamentos. Os olhos, principalmente, raiados por estrias amarelas e vermelhas, eram tristes e úmidos, um modo remoto de continuar com sua humanidade.

 - Me dá!

A repetição do pedido não aumentava nem diminuía a intensidade de seu desejo, que era monótono. Ele o repetia apenas como um modo de interromper o tempo vazio, e também porque a um homem não se pode privar inteiramente de tudo. O Gordo, entretanto, ria cada vez mais alto, pois sentia muito prazer em aumentar seu domínio.

O primeiro inverno passado na estrada refluiu como sensação, aquele frio na cabeça. O frio que então sentia machucava-lhe o corpo todo, mas de uma forma tão aguda que o céu acabava distanciando-se muito, como uma coisa inatingível. Os olhos é que sabiam bem, que se fechavam para não sentir mais frio.

O sol batia-lhe no rosto só como iluminação porque era um sol imprestável para aquecimento, quando percebeu subindo da terra um barulho de botas. Continuou de olhos fechados, pois nunca tinha nada o que pudesse fazer. Tão-somente vivia por não saber outra coisa. Foi assim que viu pela primeira vez o gorro, jogado sobre seu corpo, com barulho e susto. Abriu bem os olhos, o mais que pôde, pois queria ver a cara do anjo. O único movimento do mundo era uma brisa molhada de orvalho, que transportava o frio de um lado para outro. O gorro jazia imóvel sobre seu peito, feito uma propriedade sua, tão sólido como um sol colorido e quente.

No alto da gameleira uma cigarra pôs-se a chiar e o fez com tamanho empenho e volume que o mundo ficou estridente. Aquilo aumentou a intensidade frenética do sol que atravessava a copa da árvore e vinha cair em feixes longos e delgados sobre os dois homens que digeriam o almoço, sentados sobre pilhas de pedras.

- Me dá!

Houve uma leve alteração na voz envelhecida que, um pouco mais trêmula, deixava de ser um pedido, quase um apelo impotente, para se tornar uma exigência. A mão aberta no braço estendido não recuava. A cigarra continuava a chiar no alto da gameleira, o mundo estridulava, o sol descia em feixes da copa da árvore e o Gordo se finava afogado naquela gargalhada grossa de catarro.    

Nunca mais tinha sentido frio na cabeça, depois daquela manhã. Arredou os trapos e levantou-se, já com o gorro na mão. Ao enfiá-lo na cabeça até cobrir as orelhas, olhou longe, as distâncias, e contemplou a várzea que se estendia em sua frente, muito imperador naquele conforto. Atravessou a cerca que o separava do acostamento e marchou seguro na direção do posto de gasolina, a pouco mais que dois quilômetros à frente, onde sabia garantido seu desjejum. Assim, sim. E aquele conforto descia-lhe da cabeça para o corpo, por isso pisava tão firme o asfalto.  

Quando acordou da sesta, as pálpebras desgrudando-se ainda com dificuldade, a primeira coisa que viu foi seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do Gordo. Então sentiu frio na cabeça, um frio antigo, e uma náusea gelada subiu-lhe do estômago cheio até inundar sua boca de um gosto amargo: uma sensação de vida inútil.

Aquele riso grosso, do Gordo, não era uma alegria leve e doce, provida com as suavidades da vida. Não era. Seu riso vinha de uma região obscura, quase o inexplicável que é a invocação tenebrosa, quando se chama a morte.

A pedra que rachou a cabeça do Gordo e silenciou todas as histórias que ele contava rolou e misturou-se às outras pedras, todas elas com aquela mesma aparência de inocente dureza. O gorro, finalmente recuperado, tinha uma pequena mancha de sangue, que em pouco tempo estaria seco, apenas uma pequena mancha escura.

Apesar de ser uma tarde quente de sol, o Andarilho, com seu gorro na cabeça, pôs-se na estrada como se tivesse aonde chegar. Mas não andava muito rápido, porque sua idéia de futuro era aquela sensação de que agora sim, agora poderia enfrentar as noites frias do inverno.
                                                                *
Conto da coletânea A coleira no pescoço, Ed. Bertrand Berasil, 2006.




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