O Gorro do Andarilho
- Me dá! – repete com
voz envelhecida e olhos grisalhos, sem brilho.
Como resposta, uma gargalhada sem dentes e de barba suja,
desgrenhada.
Seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do Gordo,
foi a primeira coisa que viu quando acordou. Então pediu uma primeira vez, a
mão teimosa estendida. Era seu gesto antigo, de sete anos, repetido desde a
perda do emprego e da família, quando se viu sem lugar onde dormir, senão os
ninhos que fazia com a noite escorregando do céu. Ali mesmo, na beira da
estrada, ou debaixo de qualquer ponte, abrigado.
Não gostava do Gordo, porque falava demais com sua boca e
contava umas histórias de vida que não poderiam ser dele. Era um mentiroso
ocupando lugar nos acostamentos. E andava rápido, com seu tamanho, como se
tivesse aonde chegar. Não gostava. Além de mentiroso, era abusador, por se
julgar
um maioral. Pois apesar da ojeriza pelo companheiro, não era a primeira
vez que partilhava com ele seu almoço debaixo daquela mesma gameleira.
Pedia muito mais com os olhos e as mãos, parados de tão duros,
do que com as palavras, em cujo manejo vinha destreinando nos acostamentos. Os
olhos, principalmente, raiados por estrias amarelas e vermelhas, eram tristes e
úmidos, um modo remoto de continuar com sua humanidade.
- Me dá!
A repetição do pedido não aumentava nem diminuía a
intensidade de seu desejo, que era monótono. Ele o repetia apenas como um modo
de interromper o tempo vazio, e também porque a um homem não se pode privar
inteiramente de tudo. O Gordo, entretanto, ria cada vez mais alto, pois sentia
muito prazer em aumentar seu domínio.
O primeiro inverno passado na estrada refluiu como sensação,
aquele frio na cabeça. O frio que então sentia machucava-lhe o corpo todo, mas
de uma forma tão aguda que o céu acabava distanciando-se muito, como uma coisa
inatingível. Os olhos é que sabiam bem, que se fechavam para não sentir mais
frio.
O sol batia-lhe no rosto só como iluminação porque era um
sol imprestável para aquecimento, quando percebeu subindo da terra um barulho
de botas. Continuou de olhos fechados, pois nunca tinha nada o que pudesse
fazer. Tão-somente vivia por não saber outra coisa. Foi assim que viu pela
primeira vez o gorro, jogado sobre seu corpo, com barulho e susto. Abriu bem os
olhos, o mais que pôde, pois queria ver a cara do anjo. O único movimento do
mundo era uma brisa molhada de orvalho, que transportava o frio de um lado para
outro. O gorro jazia imóvel sobre seu peito, feito uma propriedade sua, tão
sólido como um sol colorido e quente.
No alto da gameleira uma cigarra pôs-se a chiar e o fez com
tamanho empenho e volume que o mundo ficou estridente. Aquilo aumentou a
intensidade frenética do sol que atravessava a copa da árvore e vinha cair em
feixes longos e delgados sobre os dois homens que digeriam o almoço, sentados
sobre pilhas de pedras.
- Me dá!
Houve uma leve alteração na voz envelhecida que, um pouco
mais trêmula, deixava de ser um pedido, quase um apelo impotente, para se
tornar uma exigência. A mão aberta no braço estendido não recuava. A cigarra
continuava a chiar no alto da gameleira, o mundo estridulava, o sol descia em
feixes da copa da árvore e o Gordo se finava afogado naquela gargalhada grossa
de catarro.
Nunca mais tinha sentido frio na cabeça, depois daquela
manhã. Arredou os trapos e levantou-se, já com o gorro na mão. Ao enfiá-lo na
cabeça até cobrir as orelhas, olhou longe, as distâncias, e contemplou a várzea
que se estendia em sua frente, muito imperador naquele conforto. Atravessou a
cerca que o separava do acostamento e marchou seguro na direção do posto de
gasolina, a pouco mais que dois quilômetros à frente, onde sabia garantido seu
desjejum. Assim, sim. E aquele conforto descia-lhe da cabeça para o corpo, por
isso pisava tão firme o asfalto.
Quando acordou da
sesta, as pálpebras desgrudando-se ainda com dificuldade, a primeira coisa que
viu foi seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do Gordo. Então sentiu
frio na cabeça, um frio antigo, e uma náusea gelada subiu-lhe do estômago cheio
até inundar sua boca de um gosto amargo: uma sensação de vida inútil.
Aquele riso grosso, do Gordo, não era uma alegria leve e
doce, provida com as suavidades da vida. Não era. Seu riso vinha de uma região
obscura, quase o inexplicável que é a invocação tenebrosa, quando se chama a
morte.
A pedra que rachou a cabeça do Gordo e silenciou todas as
histórias que ele contava rolou e misturou-se às outras pedras, todas elas com
aquela mesma aparência de inocente dureza. O gorro, finalmente recuperado,
tinha uma pequena mancha de sangue, que em pouco tempo estaria seco, apenas uma
pequena mancha escura.
Apesar de ser uma tarde quente de sol, o Andarilho, com seu
gorro na cabeça, pôs-se na estrada como se tivesse aonde chegar. Mas não andava
muito rápido, porque sua idéia de futuro era aquela sensação de que agora sim, agora
poderia enfrentar as noites frias do inverno.
*
Conto da coletânea A coleira no pescoço, Ed. Bertrand
Berasil, 2006.
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